O Direito de Hesitar
por Reynaldo Aragon
Num mundo onde pensar foi automatizado, o tempo do erro e da dúvida se tornou uma forma de resistência.
Um segundo antes de tocar na tela, já havia tocado.
A notificação piscou com o tom exato da minha ansiedade: uma sugestão de vídeo, um convite de calendário, uma oferta adaptada ao meu humor. Tudo certo, tudo conveniente. Só que não fui eu quem escolheu. A decisão — se é que houve uma — aconteceu antes da vontade. Não houve busca, nem comparação. Apenas a leveza de uma resposta que chegou antes da pergunta.
Comecei a notar esse padrão no meio da pandemia, quando o tempo doméstico virou um circuito fechado de algoritmos: o que ouvir, o que comer, o que desejar. No início parecia eficiência. Depois, conforto. Agora, resta uma suspeita incômoda: e se estivermos sendo moldados por uma arquitetura que aprende mais sobre nós do que nós mesmos ousamos saber? E se, ao evitarmos o esforço de pensar, estivermos abrindo mão do direito de hesitar?
Em nome da fluidez, estamos perdendo o atrito. E sem atrito, já não sabemos mais onde começa uma escolha — nem se ela ainda existe.
A Sedução da Fluidez
A lógica da fluidez se vende como progresso. Aplicativos que economizam toques, interfaces que antecipam comandos, algoritmos que predizem gostos antes mesmo que os sintamos. O atrito, nessa gramática, é um problema técnico. Dúvida é bug. Hesitação, falha de design.
A promessa é sedutora: um mundo sem demora, sem fricção, onde tudo se ajusta suavemente à vontade do usuário — ou àquilo que o sistema assume como sua vontade. Mas esse ideal traz consigo uma consequência silenciosa: à medida que o esforço desaparece, desaparece também o espaço da escolha. Quando tudo está à mão, nada é deliberado. Quando tudo é instantâneo, nada é vivido.
É um processo quase imperceptível. Não há proibição, nem imposição. Pelo contrário — é o conforto que nos domestica. A leveza com que as plataformas se encaixam na rotina nos impede de perceber que já não se trata apenas de usá-las, mas de ser usado por elas.
Vivemos, talvez, a primeira era em que a alienação se apresenta como conveniência. E é precisamente por isso que se torna tão difícil de recusar.
Os Atalhos que Nos Traem
O cérebro humano não foi feito para a complexidade permanente. Para sobreviver em um mundo imprevisível, ele aprendeu a economizar energia. Criou atalhos — mecanismos simples, rápidos e inconscientes de decisão. A psicologia os chama de heurísticas: tendências automáticas que nos ajudam a agir diante da incerteza.
Preferimos o familiar ao novo. Confiamos no que nos parece simples. Aceitamos mais facilmente aquilo que reforça o que já pensamos. Todas essas inclinações — que durante milênios ajudaram a espécie humana a decidir com agilidade — tornaram-se agora as engrenagens invisíveis de um novo tipo de dominação: aquela que se instala por dentro da cognição.
Hoje, quando abrimos o YouTube e ele nos entrega exatamente aquilo que desejamos — ou o que desejamos evitar — é difícil não sentir um misto de alívio e desconforto. As plataformas conhecem nossos hábitos, nossas pausas, nossas obsessões momentâneas. E ao conhecerem, nos antecipam. Não se trata mais apenas de oferecer informação. Trata-se de criar um mundo onde as decisões acontecem antes mesmo de sabermos que precisávamos tomá-las.
As heurísticas, antes escudos contra o caos, agora nos traem. E quanto mais suave a experiência, mais invisível a captura.
Quando as Máquinas Decidem Por Nós.
Houve um tempo em que a mediação tecnológica exigia esforço. Era preciso digitar, procurar, comparar. O sujeito ainda era chamado a escolher. Hoje, essa coreografia foi desativada.
O metaintermediário — essa nova camada algorítmica que se interpõe entre o mundo e a experiência — não espera que você decida. Ele interpreta, prevê e responde antes. E o faz com a mesma sutileza de um mordomo que já conhece os gostos do hóspede.
Não se trata de um simples buscador ou feed. Trata-se de um agente ativo, personalizado, que age em seu nome. Um restaurante não aparece porque você o buscou, mas porque a plataforma previu que você provavelmente teria vontade de ir. O desejo é sugerido antes de ser sentido.
A decisão ainda parece sua. Mas, como me disse um amigo: “é como se as ideias chegassem até mim sem passar por mim.” E é exatamente isso.
Alienação 2.0
Os metaintermediários não nos obrigam — nos mimam. E é por isso que funcionam. Eles nos dispensam do peso de escolher. Aliviam o cansaço da dúvida. E nesse alívio, nos domesticam.
É uma nova forma de alienação. Mais limpa, mais eficaz, mais íntima. Não nos retira apenas o produto do trabalho — retira o próprio exercício de sermos sujeitos. As decisões são tomadas antes que as formulemos. Os desejos, guiados antes que sejam sentidos. A subjetividade, convertida em perfil responsivo.
E o mais assustador: não sentimos falta do que perdemos. Celebramos a delegação como se fosse liberdade. A automação como se fosse autonomia. O silêncio como se fosse escolha.
Mas quando a dúvida desaparece, desaparece junto a possibilidade de pensar diferente.
O Novo Colonialismo é Cognitivo.
O metaintermediário não é apenas uma tecnologia. É uma ideologia codificada. Ele tem idioma, origem, acionistas. E um mundo inscrito em sua lógica.
No Sul Global, ele chega como inovação. Como ponte para o progresso. Mas a ponte é de mão única. Nossos dados são extraídos. Nossas rotinas, monetizadas. Nossos desejos, reembalados. E o que volta já vem moldado.
A epistemologia das plataformas não conhece — e não quer conhecer — nossas formas de hesitar. A lentidão é falha. O conflito, ruído. A dúvida, ineficiência.
Não é censura. É desuso. Um epistemicídio suave, feito de ausências.
Para Uma Ética da Fricção
Talvez a primeira forma de resistência seja simplesmente demorar. Respirar entre o impulso e a resposta. Reabilitar o tempo do pensamento.
Num mundo otimizado para a leveza, hesitar é subversivo. Errar, um gesto de liberdade.
A fricção, que nos ensinaram a evitar, é o que torna a experiência humana. É no atrito que nascem as ideias que desafiam. É na lentidão que o desejo se escuta. É na dúvida que o mundo reaparece.
Precisamos reaprender a desconfiar do que nos entende rápido demais. A desconfiar daquilo que não exige nada. Porque viver talvez seja, antes de tudo, ter o direito de não saber ainda.
E nesse intervalo entre o clique e o pensamento, entre o dado e o desejo, talvez — só talvez — ainda nos reste o poder de dizer: ainda não.
Reynaldo Aragon é jornalista e pesquisador em geopolítica da informação. Vive e escreve no Brasil.
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