Em plena guerra contra a Rússia, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky enfrenta um novo e inesperado front: as ruas de Kiev e o clamor de uma sociedade civil que começa a se sentir traída. A sanção presidencial a uma polêmica lei que retira a independência de órgãos-chave no combate à corrupção — o Nabu e o Sapo — provocou os primeiros protestos populares contra seu governo desde 2022.
Veteranos de guerra, ativistas, estudantes e até políticos aliados engrossaram os atos. O que os une é um sentimento de decepção com um presidente que, eleito sob a bandeira do combate à corrupção, agora parece repetir velhos padrões que jurou enterrar.
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A lei do retrocesso: concentração de poder
A nova legislação dá ao procurador-geral — indicado pelo próprio presidente — amplos poderes sobre investigações anticorrupção, desfigurando o sistema criado após a chamada Revolução da Dignidade (2014), o golpe que derrubou o presidente Viktor Yanukovych, que pretendia se afastar da União Europeia e se aliar à Rússia. O risco de interferência política direta nas investigações levantou alertas não apenas entre cidadãos ucranianos, mas também entre autoridades europeias e parceiros internacionais.
A Transparência Internacional descreveu a medida como “destruição institucional”, enquanto a Agência para Iniciativas Legislativas afirmou que ela representa uma “virada de 180 graus” na integração europeia. A UE já sinalizou que o enfraquecimento das instituições anticorrupção pode comprometer seriamente as negociações de adesão da Ucrânia ao bloco.
Zelensky repete velhas práticas?
Zelensky chegou ao poder como um outsider político — um comediante da TV que prometia livrar a Ucrânia da corrupção sistêmica. No entanto, críticos apontam que a sanção da nova lei representa uma ruptura com sua principal bandeira eleitoral.
“Nada é mais desmoralizante do que saber que, enquanto você está em uma trincheira, alguém está roubando o país pelo qual seus irmãos morrem”, escreveu o sargento-chefe Yegor Firsov.
Para muitos, o gesto de Zelensky lembra os tempos de oligarcas intocáveis e instituições fragilizadas — exatamente o que a Ucrânia buscava deixar para trás ao se aproximar do Ocidente.
Isolamento diplomático à vista
As reações internacionais não tardaram. A UE declarou estar “seriamente preocupada”, enquanto a Câmara de Comércio Americana classificou a medida como “um golpe à infraestrutura anticorrupção”.
Até mesmo vozes historicamente pró-Kiev, como o ex-embaixador dos EUA na Rússia, Mike McFaul, e o ex-presidente da Estônia, Toomas Ilves, expressaram frustração com a guinada autoritária.
A tensão diplomática chega em um momento delicado: a Ucrânia busca manter o fluxo de bilhões em ajuda militar e humanitária de seus aliados, além de avançar nos trâmites para adesão à União Europeia. A nova lei mina a credibilidade do país no cenário internacional.
Um presidente em contradição
Ao justificar a medida, Zelensky afirmou querer livrar as agências de “influência russa”, citando a prisão recente de dois membros do Nabu. Mas o argumento soou mais como pretexto do que solução para críticos que veem na ação uma tentativa de controle político sobre investigações sensíveis — possivelmente até envolvendo membros do próprio governo.
Zelensky anunciou, em resposta à indignação pública, que apresentará um novo projeto de lei para preservar a independência dos órgãos. A movimentação, no entanto, parece mais uma tentativa de contenção de danos do que um arrependimento genuíno.
Democracia sob teste
Zelensky ainda conta com significativo apoio popular, mas o episódio abriu uma rachadura importante na imagem de líder incorruptível. Ao mesmo tempo em que luta contra uma invasão brutal e resiste ao imperialismo russo, seu governo começa a flertar com práticas autoritárias internas — como o cerco a órgãos fiscalizadores, a marginalização de vozes críticas e o uso político da guerra como escudo para retrocessos institucionais.
“Zelensky ainda é nosso presidente. Mas quando ele faz algo errado, nós o diremos”, resumiu a manifestante Sasha Kazintseva.
A frase ecoa o espírito de uma sociedade que ainda quer acreditar na democracia, mesmo em tempos de guerra — mas que começa a perder a paciência com líderes que pregam uma coisa e fazem outra.