Zambelli e a praga das Fake News

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O TRE cassou o mandato de Carla Zambelli porque ficou provado, acima de qualquer dúvida, que ela divulgou Fake News e obteve benefício eleitoral indevido participando de uma rede criada para espalhar Fake News. Esse é o fato juridicamente relevante que consta do Acórdão proferido pelo TRE. Da decisão merece destaque aqui o seguinte fragmento:

“…o teor das publicações impugnadas por essa representante revela ter ela constantemente alimentado páginas mantidas em redes sociais com informações falsas ou gravemente descontextualizadas, sempre enfatizando incitação de animosidade e hostilidade contra o sistema eleitoral e a membros do Poder Judiciário.

Acerca das eleições gerais de 2022, essa ré, conscientemente, buscou difundir informações fraudulentas durante todo o período eleitoral.

Com efeito, no dia 19 de fevereiro de 2022, publicou ela a seguinte manchete: “Barroso, Fachin e Alexandre comandam no STF o mais feroz partido de oposição a Bolsonaro” (ID 65019307, folhas 5). Logo, essa representada externou tentativa de deslegitimar a atuação desses ministros do colendo Supremo Tribunal Federal, aos quais, então, imputara atuação tendenciosa e partidarizada.

Externando prática semelhante, conforme publicação no Facebook em 10 de abril de 2022, essa interessada, reiterando ataques infundados contra o sistema eleitoral, afirmou nos seguintes termos: “A verdade: TSE confessa que as eleições de 2018 ocorreram com ‘712 riscos’. – Desde então, nada fizeram para zerar esses riscos. Imaginem a confiabilidade das eleições anteriores” (ID 65019307, folhas 5).

Essa representada também compartilhou vídeo em 27 de setembro de 2022, pelo qual insinuou a existência de irregularidades, sabidamente inverídicas relacionadas a procedimento de carga e lacração de urnas eletrônicas no município paulista de Itapeva (ID 65019307, folhas 10).

A propósito, no dia anterior, ou seja, em 26 de setembro de 2022, este Tribunal Regional Eleitoral esclarecera que o cartório da 53ª Zona Eleitoral  (Itapeva-SP), por falta de espaço físico nas respectivas dependências,  realizava a carga e lacração de urnas eletrônicas, desde o ano de 2014, de forma oficial e transparente na sede do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção, do Mobiliário, Cimento, Cal, Gesso e Montagem Industrial (Sinticom), localizado ao lado dessa unidade eleitoral.

Porém, essa interessada fizera propaganda eleitoral irregular mediante vídeo no YouTube contendo falsa notícia de suposta manipulação de urnas.

Essa publicação fora removida das plataformas de redes sociais por força de decisão do colendo Tribunal Superior Eleitoral, condenada então a representada a pagar multa, consoante julgamento, em parte, assim ementado: 

REPRESENTAÇÃO. ELEIÇÕES 2022. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR. INTERNET.1. Representação ajuizada por coligação em desfavor de candidata ao cargo de deputado federal por São Paulo nas Eleições 2022, por propaganda irregular consubstanciada em vídeo de sua autoria, na plataforma YouTube, em que veiculou notícias falsas a respeito de suposta manipulação de urnas eletrônicas no Município de Itapeva/SP.

(…)

TEMA DE FUNDO. CONTEÚDO FALSO E ATENTATÓRIO À LISURA DO PROCESSO ELEITORAL. ART. 57-D, § 2º, DA LEI 9.504/97.5. Lê-se no art. 27, § 1º, da Res.-TSE 23.610/2019 que ‘[a] livre manifestação do pensamento de pessoa eleitora identificada ou identificável na internet somente é passível de limitação quando ofender a honra ou a imagem de candidatas, candidatos, partidos, federações ou coligações, ou divulgar fatos sabidamente inverídicos […]’.

6. Nos termos da jurisprudência desta Corte, é cabível aplicar-se a multa prevista no art. 57-D, § 2º, da Lei 9.504/97 na hipótese de abuso na liberdade de expressão ocorrido por meio de propaganda veiculada na internet – como ocorre na divulgação de discurso de ódio, ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático, e de informações injuriosas, difamantes ou mentirosas. Nesse sentido, a decisão proferida na Rp 0601754-50/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, sessão de 28/3/2023.

7. No caso, são inequívocos o conteúdo do vídeo impugnado e sua veiculação em 27/9/2022 na plataforma YouTube. Nele, a representada apresenta-se como Deputada Federal e afirma que estaria buscando esclarecimentos sobre suposta manipulação de urnas eletrônicas no Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção, do Mobiliário, Cimento, Cal, Gesso e Montagem Industrial de Itapeva/SP. Ademais, relata seu assombro com o fato de haver pessoas “manipulando” urnas eletrônicas em local irregular, sugerindo que estaria acontecendo algo grave na preparação do pleito, o que precisaria ser apurado. Consta, por fim, do vídeo: “Carla Zambelli Deputada Federal 2210”.

8. Tal como assentou esta Corte ao referendar a liminar deferida neste feito, o conteúdo transmite desinformação e apresenta situações gravemente descontextualizadas. Ressalte-se que, antes mesmo do vídeo, o TRE/SP veiculou nota em 25/9/2022 esclarecendo os fatos e, mesmo assim, a representada divulgou suspeita manifestamente infundada, além de omitir a resposta da autoridade competente, em ato de evidente má-fé.

9. O sistema eletrônico de votação brasileiro, internacionalmente reconhecido, foi implementado nas Eleições 1996 e atendeu de forma inequívoca aos propósitos de segurança dos dados, de sigilo do voto e de celeridade na apuração, em contraposição a inúmeros os fatores que poderiam comprometer os pleitos em urnas de lona, tais como erros humanos na fase de contagem e manipulações em benefício de candidatos e legendas.

10. A parceria entre órgãos institucionais de ponta na área de tecnologia, a constante busca por inovação e o contínuo diálogo propiciaram a plena segurança do sistema eletrônico de votação nos seus 27 anos, sem nenhuma prova de fraude de qualquer espécie, conforme inúmeras auditorias internas e externas e testes públicos de segurança promovidos pela Justiça Eleitoral.

(…) Assim, tem-se que os efeitos nefastos da conduta perpetuam-se para depois do término do período eleitoral e que o conteúdo do vídeo pode vir a ser usado para novas e descabidas agressões em pleitos futuros, o que justifica sua remoção.

CONCLUSÃO. PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS.15. Pedidos julgados procedentes para aplicar à representada Carla Zambelli Salgado de Oliveira multa pecuniária no valor de R$ 30.000,00 e, ainda, determinar a remoção dos conteúdos indicados nos links contidos às fls. 33-34 da petição inicial.” Representação 060136565, relator o ministro Benedito Gonçalves, publicação no Diário de Justiça Eletrônico de 2 de outubro de 2023. Esses destaques não constam no texto original.

 Ainda, no dia 28 de setembro de 2022, essa investigada divulgou documento intitulado “Resultados da auditoria de conformidade do PL no TSE”, contendo as várias e seguintes afirmações sabidamente inverídicas acerca do processo de apuração das eleições: “Somente um grupo restrito de servidores e colaboradores do TSE controla todo o código fonte dos programas da urna eletrônica e dos sistemas eleitorais. Sem qualquer controle externo, isto cria, nas mãos de alguns técnicos, um poder absoluto de manipular resultados da eleição, sem deixar qualquer rastro (…)”.

Ressalta-se ter sido essa desinformação passível de esclarecimento pelo Tribunal Superior Eleitoral, na seguinte conformidade: “(…) “são falsas e mentirosas, sem nenhum amparo na realidade, reunindo informações fraudulentas e atentatórias ao Estado Democrático de Direito e ao Poder Judiciário, em especial à Justiça Eleitoral, em clara tentativa de embaraçar e tumultuar o curso natural do processo eleitoral” (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Setembro/nota-a-imprensa, último acesso em 26 de novembro de 2024).

Outrossim, recentemente – autos da Representação 060084690, sob trâmite no colendo Tribunal Superior Eleitoral -, a representada, outra vez, fora condenada em multa por propagação de desinformação à época das eleições de 2022, dado publicar conteúdo falso em redes sociais consistente na afirmação de que o Código QR, contido na versão eletrônica do título de eleitor (e-Título), contabilizaria, de forma automática, votos em benefício de candidato de coligação adversária.

Essa informação é falsa, porque esse código destina-se apenas a identificar o eleitor perante a Justiça Eleitoral, portanto, sem ter aptidão para interferir em votação, consoante esclarecido mediante julgado desse colendo Tribunal Superior, cuja ementa, em parte, é de seguintes termos:

ELEIÇÕES 2022. REPRESENTAÇÃO. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR. PUBLICAÇÕES EM REDES SOCIAIS. AFIRMAÇÕES SABIDAMENTE INVERÍDICAS. CARÁTER DESINFORMATIVO. INFRAÇÃO AO ART. 9º-A DA RES.-TSE 23.610. PROCEDÊNCIA PARCIAL DOS PEDIDOS. LIMINAR PARCIALMENTE DEFERIDA. CONFIRMAÇÃO. REMOÇÃO DE CONTEÚDO. ART. 57-D, § 2º, DA LEI 9.504/97. MULTA. APLICAÇÃO. PROCEDÊNCIA PARCIAL.SÍNTESE DO CASO

1. Trata-se de representação ajuizada pela Coligação Brasil da Esperança em desfavor de Dárcio Bracarense Filgueiras, Carla Zambelli Salgado de Oliveira e Inácio Florêncio Filho, sob a alegação de que os representados veicularam propaganda eleitoral irregular nas Eleições de 2022, por meio de postagens em redes sociais, nas quais afirmavam que o QR CODE contido na nova versão do título de eleitor (e-Título) contabilizaria de forma automática votos em benefício do candidato da coligação investigante.

(…)

10. Na espécie, considerando a chamada desinformativa, a publicação de conteúdo que confunde o eleitorado e falseia ideia a respeito da nova versão do título de eleitor (e-Título) e o alcance do conteúdo impugnado, justifica-se a fixação da multa em patamar acima do mínimo previsto em lei. Além disso, a propaganda irregular se reveste de maior gravidade porque afeta a credibilidade do eleitorado na Justiça Eleitoral, causando desconfiança na legitimidade do processo eleitoral, de tal sorte que se afigura razoável e proporcional a aplicação, aos representados, de multa individual, com fundamento no § 2º do art. 57-D da Lei 9.504/97, da seguinte forma: a) Dárcio Bracarense Filgueiras e Inácio Florêncio Filho ao pagamento de multa individual na quantia R$ 15.000,00, em virtude da veiculação de propaganda eleitoral irregular, com base no art. 57-D, § 2º, da Lei 9.504/97; e b) Carla Zambelli Salgado de Oliveira, ao pagamento de multa individual na quantia R$ 30.000,00, em virtude da veiculação de propaganda eleitoral irregular, com base no art. 57-D, § 2º, da Lei 9.504/97.PROCEDÊNCIA PARCIAL FUNDAMENTO

11. Tal como sucedido no pedido de liminar, a procedência parcial da representação se justifica unicamente pela não identificação, pela representante, dos responsáveis por alguns perfis representados que haviam sido indicados na exordial. Procedência total dos pedidos em relação às partes citadas. CONCLUSÃO Representação julgada parcialmente procedente. Embargos de declaração julgados prejudicados.” Representação nº 060084690, relator o ministro Floriano De Azevedo Marques, publicação no Diário de Justiça Eletrônico de 14 de junho de 2024. Esses destaques não constam no texto original.

Consequentemente, a investigada beneficiou-se da animosidade que incitou contra os sistemas judiciário e eleitoral mediante desordem informativa engendrada para minar a confiabilidade da população no processo eleitoral brasileiro, e, assim, obter novo mandato na Câmara dos Deputados por meios ilegítimos.

O alcance das redes sociais dessa representada, que conta com milhões de seguidores, foi essencial para a disseminação massificada de conteúdos falsos ou gravemente descontextualizados.

Nesse ponto, também, é de consideração o bem-lançado parecer da douta Procuradoria Regional Eleitoral (ID 65918938), do qual se transcreve a seguinte parte:

As condutas imputadas pela Investigante à Investigada são graves. Os constantes ataques à higidez das urnas eletrônicas e ao processo eleitoral brasileiro, já presentes nas eleições gerais de 2018 e agravados nas eleições de 2022, merecem análise atenta da justiça eleitoral uma vez que esta permanente peroração tem por finalidade desmerecer e retirar a credibilidade do conjunto de instituições responsáveis pela condução e organização do processo eleitoral. Esse comportamento tem por consequência fazer brotar na consciência de seus apoiadores a ideia de que o processo democrático não se aperfeiçoou com a escolha livre pelos eleitores, mas, sim, que os vencedores foram ilegitimamente catapultados ao poder pela via de ação inidônea do sistema de justiça. A consequência de tais ações é o não apaziguamento das relações sociais após o resultado eleitoral proclamado (…)

Logo, a  imputação da autora da ação a respeito dessa investigada haver integrado  “ecossistema de desinformação” está comprovada, pois ela (ré) atuou em conjunto e para benefício de diversos outros aliados políticos, compondo verdadeira rede de disseminação de desinformação em prejuízo do processo eleitoral e de candidatos adversários.

Portanto, o conjunto da prova contida nos autos demonstra que essa representada utilizou-se indevidamente de redes sociais com o fim de influenciar no resultado das eleições gerais de 2022, em benefício próprio e de aliados políticos.” (TRE, processo 0608556-41.2022.6.26.0000)

Todavia, assim que o Acórdão foi divulgado, o Facebook foi inundado de notícias falsas. Algumas delas dão a impressão que a Deputada foi cassada porque protagonizou aquele espetáculo grotesco ao perseguir um adversário dela com a arma de fogo em punho. Outras afirmam que a deputada foi injustamente perseguida. Eis alguns exemplos:

Adversários e partidários da deputada disputam os corações e mentes dos eleitores recorrendo às mesmas estratégias que levaram à cassação do mandato dela. Essa conduta não é ilegal, quer porque eles não estão disputando eleições quer porque a Constituição Cidadã garante a liberdade de expressão. Todavia, aqueles que questionam a correção de uma decisão judicial deveriam fazer isso mediante argumentos racionais e não com ataques à dignidade do Poder Judiciário.

Processos devem ser julgados com base em provas colhidas nos autos sob o crivo do contraditório. A deputada cassada teve direito de defesa? Decisões judiciais válidas só podem ser proferidas pelas autoridades competentes para apreciar o caso. A internet é o Tribunal competente para julgar ilegalidades cometidas por candidatos durante as eleições? Sentenças e Acórdãos devem conter fundamentação jurídica adequada. Ao condenar a deputada à perda do mandato o TRE descumpriu a legislação vigente e/ou ignorou a jurisprudência dominante na Justiça Eleitoral?

Nem os adversários, nem os partidários da deputada estão realmente preocupados com o processo e a decisão que foi proferida. O que os dois grupos querem é usar o episódio para fins político-partidários. Mas a Justiça não pode se deixar dominar ou influenciar pelas guerras de palavras que visam unicamente reforçar preconceitos ou tratar um processo e seu resultado como “espetáculo político-partidário”. A missão dos juízes é cumprir e fazer cumprir a legislação em vigor e respeitar a jurisprudência dominante. Quando necessário, eles podem e devem aperfeiçoar suas decisões levando em conta a evolução da doutrina e da própria sociedade como um todo.

Carla Zambelli não é uma coitadinha que foi injustamente perseguida. Ao espalhar Fake News e participar de uma rede criada para espalhá-las a deputada sabia o que estava fazendo. Ela calculou que o benefício eleitoral que poderia auferir era muito maior do que risco de cassação posterior do mandato dela pela Justiça Eleitoral. O cálculo dela estava errado e ela perdeu o processo. A única coisa que a deputada cassada poderá fazer agora é recorrer e aguardar a decisão do TSE.

Mas me parece evidente que praga das Fake News veio para ficar. E a única vacina possível contra elas é a pedagogia do esclarecimento. Os cidadãos precisam aprender que existe uma diferença qualitativa entre o “processo judicial decidido na forma da Lei pela autoridade competente” e as “Fake News criadas com base no processo e seu resultado” para mobilizar os corações e mentes dos cidadãos antes das próximas eleições.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Last Update: 03/02/2025