JANGO SÓ CHAMAVA SEU MINISTRO DA FAZENDA DE EMBAIXADOR. Respeitava-o, e citava frequentemente as referências de Vargas a seu respeito. O destino foi injusto com Jango, pensava Walther. Era um homem de boa-fé, um conciliador. Mas havia a imagem do cunhado que o atormentava, as indecisões e um deslumbramento marcante em relação a personalidades fortes. 

Dedicava ao presidente americano John Kennedy uma admiração juvenil tão intensa que, quando solicitou um encontro com o colega americano, deixou de cabelo em pé seu ministro da Fazenda e o embaixador brasileiro em Washington, Roberto Campos. Ambos tinham receio de que o encontro com Kennedy acirrasse ainda mais as tendências populistas de Jango. 

Por prevenção, Walther seguiu na frente da comitiva e encontrou-se com Mike Mansfield, líder democrata no Senado e seu amigo desde a primeira passagem pela embaixada. Na inauguração de Brasília, JK o incumbira de convidar o senador Mansfield. Em outros momentos, Walther o hospedara em sua casa, assim como a sua mulher e sua filha. Tornara-se amigo de toda a família. 

Essa intimidade permitiu a Walther falar francamente com Mansfield. Fê-lo entender que Jango não era esquerdista, mas facilmente influenciável e que demonstrava tendências populistas que às vezes atrapalhavam a gestão da economia. O governo já enfrentava dificuldades com a expansão de crédito do Banco do Brasil. Como Jango era fascinado por Kennedy, seria importante que o presidente americano não desse muita ênfase à questão social. A preocupação era o acordo com o FMI. Se Jango enveredasse pelo populismo, não haveria a menor possibilidade de cumprir as metas acertadas com o Fundo. 

Mansfield acalmou-o: 

— Eu arranjo para você falar amanhã com Kennedy. 

O Embaixador conhecia Kennedy desde seus tempos no Senado. Além disso, era amigo dos pais de Jackie, a primeira-dama. Conhecera Jackie, a mãe e o padrasto Hugh D. Auchincloss Jr., filho de um dos fundadores da Standard Oil, em uma viagem de turismo a Nova Délhi, quando ainda era diretor da Sumoc. Ficaram amigos no hotel, depois seguiram juntos em viagem para o Japão. Mais tarde, embaixador em Washington, era frequentemente visitado pela mãe de Jackie e recebido nas recepções em sua casa. 

No encontro com Kennedy, o embaixador externou suas preocupações. 

Dias depois, Jango chegou com a comitiva. Com ele vinham San Tiago Dantas, ministro das Relações Exteriores, e Herbert Levy, líder da oposição na Câmara. Walther foi aguardá-los no aeroporto. A entrevista com Kennedy seria no dia seguinte, às 10 da manhã. Na audiência, Kennedy ficou de frente para Jango. À sua direita, o secretário do Tesouro, Douglas Dillon, e o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. À esquerda, o secretário de Estado, Dean Rusk. À direita de Jango, San Tiago. À esquerda, Walther e Campos. 

Kennedy começou a falar tendo à sua frente um pedaço de papel.

 — No ano passado, o ministro Moreira Salles esteve por aqui em missão. Assinamos um acordo de renegociação da dívida muito interessante. Mas que interessou sobretudo aos banqueiros e industriais do Brasil e dos Estados Unidos. Hoje gostaria de conversar sobre o que interessa aos trabalhadores. 

Walther e Campos entreolharam-se. Jango não falava inglês. Pelo cerimonial, cabia a Jango ou a San Tiago responder. Mas, num momento de reflexo, Walther solicitou a Jango a possibilidade de responder em seu nome. Jango aquiesceu.

— Presidente Kennedy, o presidente Goulart me autorizou a responder em seu nome. Quero agradecer as boas-vindas e também dizer que ele ficou muito satisfeito em lembrar os acordos assinados no ano passado. Esses acordos foram muito úteis não só para os banqueiros como também para os trabalhadores. Graças a ele pudemos importar mais, a maior parte da América, garantindo mais emprego para os trabalhadores americanos. O presidente agradece muito e espera que as negociações continuem com cordialidade. 

Saíram de lá e foram para o almoço. Kennedy abriu a porta e quando Walther passou bateu-lhe no ombro: 

— Job well done. 

Na antessala estava Dick Goodwin, responsável pela Aliança para o Progresso, e possível inspirador da fala de Kennedy. Walther o havia conhecido na viagem de Dillon para a reunião de Punta del Este. De fato, ele é que havia encaminhado o papel para Kennedy. Walther abordou-o: 

— Por que você deu aquele papel para seu presidente? 

— Porque este será o pensamento que deve ordenar nossas relações. 

Jango nunca soube o que Kennedy lhe dissera. 

Walther conhecera Goodwin ainda no governo Jânio, quando ofereceu sua casa de veraneio para um encontro reservado entre ele e Che Guevara. Os filhos nunca souberam desse episódio, mesmo anos depois Walther Moreira Salles Filho, o cineasta, tendo produzido um filme sobre Che. Foi uma conversa fora do usual entre dois jovens. 

Guevara indagou de Goodwin, com 29 anos na ocasião, se seria uma conversa entre inimigos ou entre duas pessoas para discutir um problema comum: 

— Entre inimigos — esclareceu Goodwin, explicando que não estava credenciado para falar em nome do governo americano. 

Em tom jocoso, Guevara agradeceu pela invasão da Baía dos Porcos, que ajudou a consolidar a revolução cubana, ao unir a população em torno de Fidel Castro. Goodwin replicou no mesmo tom, dizendo que os cubanos poderiam retribuir o favor invadindo Guantánamo. Ao que Guevara rebateu: 

— Ah, não somos loucos.

Nassif, Luís. Walther Moreira Salles: O banqueiro-embaixador e a construção do Brasil (Portuguese Edition) . Companhia Editora Nacional. Edição do Kindle. 

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Last Update: 09/01/2025