Walter Benjamin e o (Re)nascimento do judaísmo não sionista: urgências históricas do tempo de agora
por Ivonaldo Neres Leite
O que significa contar uma história, dizer histórias e escrever a história? Este é um tema que, de imediato, nos remete ao pensador judeu/alemão Walter Benjamin, designadamente ao que ele realça em suas teses sobre o conceito de história.
Tendo em atenção que a palavra alemã Geschichte, designando a história, corresponde tanto ao processo de desenvolvimento da realidade no tempo como a investigação desse processo, além de dizer respeito, também, a qualquer relato, inferimos que a concepção de Benjamin sobre a história não se limita ao registro de uma “coleção” de fatos e a especulações sobre o devir histórico. Ela incide, fundamentalmente, sobre uma reflexão crítica a respeito do nosso discurso acerca da história/histórias, sendo em esse discurso inseparável de uma prática concreta. Dessa forma, a escrita da história relaciona-se a questões mais amplas da prática política e da atividade de narração.
Como decorrência, Benjamin opõe-se a duas formas de escrever a história aparentemente diferentes, mas que têm origem em um background epistemológico comum. Quais sejam: uma forma norteada pela ideia de progresso inevitável, sendo este ‘cientificamente previsível’, e outra oriunda do historicismo, representado pela tradição acadêmica, por exemplo, de Ranke e Dilthey. No primeiro caso, há um prejuízo ao escrutínio de fatos e fenômenos; no segundo, pretende-se reviver o passado por meio de uma espécie de ‘identificação afetiva’ do historiador com o seu objeto, predominando uma perspectiva fixista do passado.
Tanto em um caso como em outro, apesar da aparente diferença, o postulado de base, porém, é uma concepção de tempo homogêneo e vazio, marcadamente cronológico e linear. Diante disso, conforme a interpretação das dezoito teses sobre o conceito de história e de seus dois apêndices, que a pena de Benjamin trouxeram a lume, o desafio que se coloca, como bem fez notar Jeanne Marie Gagnebin, é o de “fundar um outro conceito de tempo, ‘tempo de agora’ (Jetztzeit), caracterizado por sua intensidade e brevidade, cujo modelo foi explicitamente calcado na tradição messiânica e mística judaica”[1].
Por incomum que possa parecer, o que a filosofia da história de Benjamin propõe é uma concepção materialista, que seja capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, tendo em atenção os sofrimentos acumulados e dando uma nova face às esperanças frustradas. Segundo consta na tese 16, em lugar de apontar para uma ‘imagem eterna do passado’, como faz o historicismo, ou, como é próprio dos marcos de uma teoria do progresso, para a de ‘futuros que cantam’, a filosofia da história de Benjamin pugna pela construção de uma ‘experiência’ (Erfahrung) com o passado.
Walter Benjamin escreveu as suas teses sobre o conceito de história numa época de grande atribulação na Europa, no fim dos anos 1930, em meio à ascensão do fascismo, como querendo chamar a atenção para os perigos ‘daquele tempo presente’, perigos que o levaram a perecer, em 1940, ao fugir do nazismo. Momentos atribulados e perigosos que requeriam uma atenção narrativa minuciosa ao ‘tempo do agora’. Tal qual ocorre atualmente, oito décadas depois, com a ascensão mundial dos extremismos e a normalização da banalização das mortes de civis, designadamente de mulheres e crianças, como tem acontecido na Faixa de Gaza.
No caso de Gaza, as urgências da sua crise humanitária e a necessidade de narrar o ‘tempo do agora’, como assinalado por Benjamin, têm feito (re)nascer, com vigor, a tradição não sionista do judaísmo. Tradição pujante em uma determinada altura, mas que, após o inominável horror do Holocausto contra os judeus, foi, em larga medida, ultrapassada pelo sionismo, e provavelmente, diante de posições moderadas deste, ela tenha até mesmo, em certa medida, se acomodado às suas perspectivas. Contudo, a situação se modificou profundamente em face do extremismo do atual governo de Israel, que, com uma reação desproporcional à ação mortífera do Hamas de 7 de outubro de 2023, produziu uma catástrofe humanitária (matando, principalmente, mulheres/crianças e generalizando a fome) que é, absurdamente, comemorada de modo efusivo por políticos israelenses da extrema direita, como Itamar Ben-Givir e Bezalel Smotrich.
Duas evidências do renascimento vigoroso do judaísmo não sionista são, por exemplo, a realização do Primeiro Congresso Judaico Antissionista e a multiplicação de grupos/movimentos nacionais judaicos contrários ao sionismo e de solidariedade ao povo palestino.
O Primeiro Congresso Judaico Antissionista teve lugar entre os dias 13 e 15 de Julho último, em Viena, contando com a participação de cerca de 1000 congressistas de diversos países. A cidade de Viena não foi definida por acaso para sediar o Congresso. A sua escolha teve um significado simbólico: ela é o local das raízes políticas do sionismo, pois foi em Viena que, no final do século XIX, Theodor Herzel escreveu a obra ‘O Estado Judeu’, onde perspectivou um Estado de colonização puramente judeu na Palestina ou na Argentina. Contudo, desde o princípio, vozes judaicas se levantaram em oposição às teses do sionismo, tanto por razões religiosas como éticas e políticas. Judeus socialistas e universalistas seculares, por exemplo, criticaram fortemente o sionismo como um movimento nacional colonialista.
Relembrando fatos como esse, a convocatória do Congresso assinalou o seguinte: “Viena é o lugar ao qual o sionismo político deve a sua obra mais famosa. Com o Congresso Judaico Antissionista de 2025, Viena também se tornará o lugar que fará com que as posições antissionistas dos judeus sejam ouvidas publicamente, manifestando uma clara rejeição em dois sentidos: de apropriação da identidade judaica para justificar a violência colonial, por Israel, e de oposição à apropriação do judaísmo pelo sionismo[2]. Ao final do Congresso, definiu-se a realização da segunda edição do evento em 2026, buscando a ampliação da participação de judeus/sua descendência de todo o mundo, principalmente do Sul Global. Aprovou-se, também, uma declaração final apresentando as principais posições do Congresso[3], onde podemos ler passagens como:
1 – “Como judeus antissionistas e aliados, estamos juntos com todos os palestinianos – na Palestina e no exílio – contra o sionismo e os seus crimes, incluindo o genocídio, o apartheid, a limpeza étnica e a ocupação. Afirmamos o direito das pessoas, sob ocupação de sua terra, de resistirem, por qualquer meio, como é reconhecido por diversos dispositivos da ONU. É vital que os judeus de consciência, em todos os lugares, se unam em oposição ao sionismo, em colaboração e em solidariedade com o movimento global pela libertação Palestina”.
2 – “Apesar das repetidas violações das resoluções da Assembleia Geral da ONU e do seu Conselho de Segurança, bem como dos extensos relatórios dos seus Relatores Especiais, nenhuma sanção jamais foi imposta a Israel. Nenhum desses crimes de guerra e crimes contra a humanidade poderia ter sido cometido ou sustentado sem o apoio ativo e entusiasmado das potências ocidentais (através de ajuda militar, apoio financeiro e cobertura política e diplomática), lideradas pelos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Ao permitir e armar um Estado criminoso que comete genocídio, esses governos compartilham a responsabilidade legal e moral prevista na Convenção sobre Genocídio de 1948”.
3 – “Rejeitamos, categoricamente, a alegação de que Israel age em nome dos judeus ou que a sua atividade criminosa é apoiada por todos os judeus. Apelamos aos judeus, em todo o mundo, para que se levantem contra o Estado sionista — para lhe negar legitimidade. […] Apelamos aos judeus israelenses para que reconsiderem a sua lealdade a um regime que nega os direitos dos palestinos há mais de oito décadas”.
4 – “Honrando o legado histórico judaico e os princípios do próprio judaísmo, instamos os judeus conscientes, em todo o mundo, a se unirem aos palestinos na rejeição à ideologia do sionismo e à sua supremacia inerente. […] Agiremos em colaboração, onde quer que estejamos, com o movimento global pela descolonização e libertação da Palestina”.
As referidas passagens são suficientemente ilustrativas a respeito das posições assumidas pelo Congresso. Quanto à segunda evidência do (re)nascimento vigoroso do judaísmo não sionista, representada pela diversidade de grupos nacionais oponentes às políticas colonizadoras dos governos israelenses e solidários à causa palestina, são exemplos entidades/movimentos como: Jewish Voice for Peace (EUA); Judíes por Palestina (Argentina); Vozes Judaicas por Libertação (Brasil); Jewish Voice for Labour (Reino Unido); South Africa Jews for Free Palestine (África do Sul); Boycott from Within (Israel); JUNTS – Associacio Catalana de Jeues i Palestins (Espanha); Jewsih Call for Peace (Luxemburgo); Union Juive française pour la paix (França); Jüdisch Stimme für gerechten Frieden in Nahost (Alemanha); Jews 4 Palestine (Irlanda); Agrupación Mexicana de Judíes Independientes (México); Independent Jewish Voices/Voix Juives Indépendantes (Canadá); Agrupación Judía Diana Aaron (Chile); Tikkun Decoloniale (Itália); Alternative Jewish Voice (Nova Zelândia) e Jews Against the Occupation ‘48 (Austrália).
Esses grupos têm se articulando e se integrado na rede internacional Global Jews for Palestine, que se define nos seguintes termos: “O Global Jews for Palestine é um coletivo internacional de organizações judaicas antissionistas. […] Somos judeus de diversos países, membros de redes e organizações locais, nacionais e internacionais. Somos multiétnicos e multigeracionais […]. Acreditamos que é nossa responsabilidade particular desafiar organizações judaicas cujas alianças e ações minam os direitos humanos e nacionais dos palestinos, promovem o excepcionalismo judaico e subvertem as tradições judaicas de justiça social”[4].
Pelos grupos que o integram e por suas ações como rede, Global Jews for Palestine tem uma ampla e consistente base representativa, e foi nessa condição que, recentemente, lançou um Manifesto Judaico Global pela Libertação Coletiva, do qual o autor do presente artigo é um dos subscritores. Trata-se de um Manifesto que questiona o sionismo, resgata o legado progressista do judaísmo e enfatiza a solidariedade com a causa palestina[5]. Entre outras perspectivas, o Manifesto assinala que:
1 – “A dissidência da postura acrítica pró-Israel da comunidade judaica institucional é uma resposta ética e fundamentalmente judaica às violações de Israel do direito internacional e à sua revogação dos valores judaicos. Não há justificativa possível para o genocídio perpetrado contra o povo palestino em Gaza e para a limpeza étnica que está sendo levada a cabo na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental”.
2 – “É improvável que as organizações judaicas sionistas tradicionais cedam o poder, adotando estruturas inclusivas e políticas baseadas na justiça. Portanto, saudamos e encorajamos a criação de novas formações comunais que organizem um judaísmo orientado para a justiça, a diversidade social e ideológica judaica, a libertação coletiva e a solidariedade para com a Palestina”.
3 – Os judeus […], em todo o mundo, precisam aprender […] sobre a Nakba (catástrofe) palestina – a expulsão, desapropriação e dispersão de grande parte da população nativa palestina como resultado da fundação do Estado judeu em 1948. A história judaica inclui atrocidades semelhantes, e compreender os paralelos entre essas histórias pode nos ajudar a obter clareza moral no presente. Os judeus precisam aceitar as formas pelas quais estamos implicados nessa história. Reconhecê-la é fundamental para alcançar justiça para o povo palestino e para criar comunidades judaicas orientadas, também, pelo sentido de justiça”.
Walter Benjamin diz que articular historicamente o passado “significa apropriar-se de uma reminiscência tal qual ela relampeja num momento de perigo”[6]. O (re)nascimento do judaísmo não sionista ocorre sob essa centelha, reatualizando o legado libertário judaico consubstanciado por uma mística da redenção e da utopia, onde o desejo de mudar o mundo assumiu, não poucas vezes, o caráter de romantismo revolucionário[7].
Esse romantismo revolucionário encontra-se, agora, com as perspectivas e ações de ativistas judaicos como a escritora Naomi Klein, reiterando a necessidade de um novo êxodo para os judeus. Isto é, o êxodo do sionismo, por, conforme as suas palavras, o projeto sionista ter deturpado a ideia de ‘terra prometida’ como metáfora da libertação humana e ter deformado o judaísmo. Ela é direta: “o nosso judaísmo é internacionalista por natureza […], é o judaísmo do Sêder da Páscoa: a reunião cerimonial para partilhar a comida e o vinho com entes queridos e com estranhos, o ritual que é inerentemente portátil, suficientemente leve para ser carregado em nossas costas, não necessitando de nada a não ser uns dos outros […]. Queremos ser livres do projeto que comete genocídio em nosso nome”[8].
Enfim, assim como as flores dirigem a sua corola para o sol, como nos diz Benjamin, o passado, graças a um ‘misterioso heliotropismo’, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O (re)nascimento do judaísmo não sionista, tomando conhecimento da relação dinâmica entre passado, presente e futuro, tem acionado a memória e a interpretação para resgatar o legado libertário da tradição judaica e para projetar luz própria sobre os seus desafios nas urgências do tempo de agora.
Ivonaldo Neres Leite – Sociólogo, professor na Universidade Federal da Paraíba; de ascendência sefardita/criptojudaica.
Notas
[1] Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta – prefácio à tradução brasileira de Walter Benjamin – Obras Escolhidas: Magia, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 8.
[2] First Jewish Anti-Zionist Congress, July 2025. Viena: where Jewish State was formulated. Disponível em: < https://www.juedisch-antizionistisch.at/en/history#vienna-the-cradle-of-political-zionism> Acesso em 01 Ago. 2025. [3] A versão integral da declaração final do Congresso está disponível em: < https://www.juedisch-antizionistisch.at/en> Acesso em 31 de Jul. 2025. [4] Cf. Global Jews for Palestine. Mission statement, September 2024. Disponível em: <https://globaljewsforpalestine.com/mission-statement/> Acesso em 29 de Jul. 2025.
[5] Manifesto disponível em: <https://globaljewsforpalestine.com/a-global-jewish-manifesto-for-collective-liberation-global-jews-for-palestine/> Acesso em 29 de Jul. 2025.[6] Tese seis das teses sobre o conceito de história. In Walter Benjamin – Obras Escolhidas: Magia, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224.
[7] A propósito, ver LÖWY, Michael. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Perspectiva, 2020. Em tal contexto, deve considerada também a especificidade da relação dos judeus com o marxismo e a interpretação materialista da ‘questão judaica’. Nesse sentido, ver, entre outros, CLEMESHA, Arlene. Marxismo e judaísmo. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2025; MARX, Karl. Para a questão judaica. Tradução de José Barata-Moura. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 51; LEITE, Ivonaldo. A dialética invertida da questão judaica. Revista O Comuneiro, Porto/Portugal, nº 40, 2025; LEON, Abraham. Concepción materialista de la cuestión judía. Buenos Aires: El Yunque, 1975.
[8] Cf. KLEIN, Noami. We need na exodus from Zionism. The Guardian, 24 de Abr. 2024. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2024/apr/24/zionism-seder-protest-new-york-gaza-israel>. Acesso em 25 de Jul. 2025.
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