Voltar aos princípios do SUS: A dialética da resiliência requer ousadias políticas

Voltar aos princípios do SUS: a dialética da resiliência requer ousadias políticas

por Alcides Miranda*, na revista Radis

Acerca da conquista de direitos sociais e da implantação das respectivas políticas públicas, o contexto histórico brasileiro está permeado por reformas incrementais e parciais, ocorridas em conjunturas mais e menos adversas.

Por isso, a implantação e a consolidação das políticas públicas de saúde com seu respectivo sistema institucionalizado de ações e serviços, o SUS, demandam esforços permanentes de inúmeras gerações.

Demandam constantes inovações, além da formulação, implementação e regulação de estratégias recursivas, administrativas, programáticas, tecnológicas, produtivas, avaliativas etc., visando a organização eficaz, a acessibilidade equânime e a produção de bens e serviços socialmente necessários, oportunamente úteis e prioritários.

Todavia, em se tratando de sistema instituído a partir de marcos constitucionais fundados em princípios éticos sociais que transcendem o sentido utilitário de serviços, seu escopo setorial e os propósitos meramente assistenciais, assomam-se desafios estratégicos sociais complexos e abrangentes.

Os princípios constitucionais do SUS implicam tensões normativas permanentes para a promoção da saúde, a partir da integração de políticas setoriais visando intervir sobre multideterminantes complexos; para a priorização e proteção de indivíduos e grupos sociais expostos iniquamente aos múltiplos riscos, desgastes e vulnerabilidades nos ambientes, no mundo da vida e do trabalho; para a recuperação com cuidados, assistência, reabilitação e reintegração em função de agravos ocorridos, de sequelas e incapacidades, de alienações e outros eventos.

Valores éticos sociais que consubstanciam tensões normativas e estratégias sociais e institucionais não redutíveis ao seu eventual valor utilitário ou de intercâmbios mercantis.

O direito universal à seguridade social, incluída a saúde, não deve estar reduzido ao sentido utilitário da “cobertura universal” de serviços assistenciais selecionados em função de “eficiência alocativa”, subordinada aos “arcabouços fiscais com financeirização” e agiotagem de orçamentos públicos.

O sentido de equidade social não deve estar reduzido aos meios-termos de focalizações compensatórias.

Os propósitos para a atenção integral não devem estar reduzidos ao consumo individualizado de procedimentos biomédicos.

A responsabilização estatal da gestão pública e da autoridade sanitária não deve estar empresariada para agentes terceirizados em instâncias de quase-mercado. A participação social não deve estar reduzida aos termos de controle burocrático.

O reducionismo utilitário e o enviesamento dos princípios éticos sociais e diretrizes estratégicas do SUS tendem a deslocá-lo para a função subordinada de complementaridade aos mercados tecnoassistenciais biomédicos, aos mercados de doenças, enquanto a Constituição Federal estabelece o inverso.

Daí, porque, importa a sua reafirmação, mas, sobretudo, importa a ousadia para a formulação e a viabilização de alternativas políticas e estratégicas visando a sua consubstanciação, mesmo em perspectiva contextual adversa.

Ao longo das últimas décadas, muitas estratégias programáticas serviram para consubstanciar incrementalmente o SUS em sua perspectiva constitucional (agentes comunitários de saúde, Estratégia Saúde da Família, redes temáticas etc.), com aportes inovadores e resultados promissores.

Entretanto, persistem pendências estratégicas primordiais e imprescindíveis ao SUS, relacionadas ao seu financiamento; suas modelagens para cuidados integrais e arranjos integrativos com outros setores de políticas públicas, seus regimes e processos de trabalho, suas relações federativas e intergovernamentais, suas responsabilidades de gestão sob a égide do Direito Público, seus processos organizativos para a regionalização, suas cadeias produtivas de insumos e incorporações tecnológicas etc., que ainda estão a requerer ousadias políticas, mais do que eventuais incrementos e ajustes sistêmicos conformados e autorregulados pelo status quo.

Nas conjunturas mais adversas ao SUS, em sua defesa é esperada a predominância de estratégias políticas visando a resistência perante iniciativas por contrarreformas e a resiliência perante disrupções.

Em conjunturas menos adversas, há necessidade e premência por iniciativas governamentais e avanços incrementais que possam transcender e suplantar as dinâmicas de integração sistêmica autorregulada, avançando dialeticamente ao encontro entre as raízes e horizontes do SUS como política de inclusão e integração social.

*Alcides Miranda é médico sanitarista, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante da diretoria executiva do Centro Brasileiro de Estados em Saúde (Cebes)

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