Voltar a estar juntos: direito, ensino e presença

por Eliseu Raphael Venturi

Vivemos tempos em que a ideia de proximidade foi, em grande medida, desmaterializada. A tela interposta tornou-se substituta do encontro, e, com isso, o ensino do Direito arrisca-se a tornar-se um simulacro de si mesmo. A proximidade virou um arquivo morto: empilhada em pastas digitais, reduzida a ícones luminosos, esvaziou-se de presença.

A aproximação do distante que as tecnologias da comunicação e informação trazem de modo algum devem ser minimizadas ou subestimadas, pelo contrário. Todos sabemos o quanto de participação e inclusão elas propiciam, assim como a emergência de identidades e saberes marginalizados que podem acontecer. Temos vivências e substrato histórico para não mais pensar de modo ingênuo ou supérfluo.

A migração massiva para o modelo remoto, embora justificável por circunstâncias excepcionais – situações de saúde física e mental, cuidados para com terceiros debilitados, situações de dificuldade geográfica etc. – deu lugar a uma permanência generalizada, e de causas morais e econômicas bem claras, que há muito vinha sendo interrogada e atualmente assume uma nova dimensão objetiva e histórica.

Parte-se, aqui, de uma afirmação simples: o ensino presencial de Direito é insubstituível porque a presença é, em si, um dispositivo de formação.

Ensinar Direito é mais do que transmitir normas, doutrina e jurisprudência. É, sobretudo, dar passagem ao sujeito jurídico em sua inscrição simbólica no mundo.

Esse processo exige convivência: com o outro, com a diferença, com a linguagem encarnada, com os silêncios que se produzem no intervalo entre uma fala e outra, e mesmo com o caos social de se estar diante de uma pluralidade de sujeitos, desejos, interesses e intenções.

A sala de aula presencial é o lugar onde o saber se adensa pela fricção entre corpos e discursos, pela gestualidade da escuta, pela irredutibilidade do outro que não pode ser silenciado por um clique.

E esse saber, no final das contas, não é um saber universal, tampouco universalizante, porque é histórico, único, construído a partir da experiência singular, o que cada um vive e viveu no seu percurso profissional, intelectual e na formação e desenvolvimento como pessoa.

A convivência é o primeiro campo de formação política. Na universidade, o Direito deveria ser menos uma técnica de aplicação de regras e mais uma experiência hermenêutica e fenomenológica atravessada pela pluralidade e pela multiplicidade do mundo.

A pluralidade não se vive, em toda sua demanda, no isolamento das câmeras fechadas, mas no embate cotidiano entre visões de mundo, especialmente em um momento da vida humana que é marcado por transições importantes, mudanças de hábito, costumes, modos de ver e viver o mundo e o outro.

A presença cria uma gramática do dissenso que permite o amadurecimento simbólico: olhar nos olhos de quem discorda, sustentar o incômodo, perceber-se parte de uma comunidade de linguagem, e mesmo virar a cara, virar os olhos, chegar às vias de fato, estar em grupos opostos; toda pedagogia básica sabe o valor dessas relações, não apenas as harmônicas, mas também as de conflito, dissenso, busca por consenso, assunção do insuperável, intolerável, indisponível.

Mais do que um espaço de transmissão pura e simples, a faculdade de Direito deveria ser um espaço de transformação. Mas não há transformação sem contato. Sem o outro que nos desorganiza, que nos exige argumentação, escuta e reposicionamento. Nada de novo nessas afirmações, mas muito de necessário e urgente em nossas histórias[i].

É no corpo-a-corpo das ideias que se forjam as alianças e, também, as rupturas fundamentais para que se compreenda o Direito não como dogma, mas como campo de disputa. A convivência presencial, portanto, não é um acessório da formação: é sua condição de possibilidade.

A tecnologia, embora facilitadora, não é neutra, tampouco imparcial. Ela organiza formas de ver, escutar e silenciar; inclui e exclui a possibilidade de usuários, acesso a conteúdo, capacidade e distância de compreensão, repertórios etc.

Muito antes da generalização da formação remota, muitos professores e cursos haviam reduzido o fenômeno jurídico à mnemônica acrítica, ao circo das vaidades, à manutenção e à exclusão de certas ordens.

Sabe-se que o país tem uma longa e conflituosa relação com as artes, a filosofia, a história e a geografia, e qualquer outro conhecimento ou saber que não se proponha a reproduzir as relações sem maior problematização[ii].

No ensino remoto, a performatividade toma o lugar da presença: os estudantes viram espectadores, os professores, transmissores. A escuta é interrompida por ruídos técnicos, e a linguagem, reduzida a comandos. Onde está a hesitação formadora? Onde está o desconforto que precede a mudança? Sem presença, o saber torna-se um produto, não um processo.

E, convenhamos, nada de novo há nesse filme, porque o que incomodava antes de se confinar o ensino nas telas, continuará a incomodar com o ensino presencial, e as “lições não aprendidas” nos últimos anos voltarão a cobrar seu preço.

No Direito essa perda é grave. Porque o Direito é essencialmente linguagem atravessada por corpos, tempo, memória e desejo. E essa linguagem é mais do que atravessada pelo poder, pela irracionalidade institucional, pela seletividade, e por toda sorte de temas que os saberes críticos não deixam de enfatizar.

O ensino remoto tende a dessubjetivar o sujeito jurídico em formação. Um estudante que não convive com a pluralidade tende a se enclausurar em sua bolha ideológica. O pluralismo é uma experiência que exige presença, porque é a partir do incômodo do outro que se aprende a habitar o Estado Democrático de Direito – sim, esse problemático, imperfeito, muitas vezes censurável e desprezível modo de exercício do poder e modo de ser das instituições.

Conviver com as diferenças é exercitar a escuta, a argumentação e a renúncia ao saber absoluto. É admitir que o Direito é uma linguagem sempre em disputa e que não há neutralidade possível.

Nesse sentido, a convivência presencial é também uma forma de resistência ao empobrecimento simbólico do ensino, à transformação da formação jurídica em treinamentos automatizados.

Acresce-se a isso uma dimensão ideológica que não pode ser negligenciada: a desvalorizacão da presença está alinhada ao enfraquecimento da docência como profissão analítica e crítica. A substituição do ensino crítico por uma velhíssima conhecida formação bancária, tecnicista e instrumental — alheia às lutas por justiça social, contra a exploração e a discriminação — corresponde a um projeto de esvaziamento da universidade como espaço de resistência e consciência. Projeto esse de destruição que a própria universidade, com costumes não muito diferentes que ela critica acerca do mundo de fora, também colabora, alimenta e perpetua.

Nessa mesma direção, a precarização do trabalho docente também se intensifica. O ensino remoto tem servido, em muitos casos, como pretexto para contratos mais instáveis, jornadas invisíveis e isolamento institucional de um modo megalomaníaco.

Um professor isolado, exausto e desprovido de sua autoridade simbólica é menos capaz de fomentar pensamento crítico. Recuperar a presencialidade é também recuperar a dignidade da função docente como mediadora do pensamento, e não apenas transmissora de conteúdo.

Dignidade essa sempre à espreita de ataques dos negacionismos, do pânico e histeria morais, da agressividade institucional e dos discentes, da ignorância, da incompreensão, da indisponibilidade ao novo, à crítica, ao espaço do político segundo o qual “[…] a política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas”[iii].

Os corredores, os intervalos, os grupos de estudo, os debates improvisados, as trocas silenciosas, tudo isso compõe o conjunto de práticas formador do Direito. Uma educação jurídica que prescinde disso está mutilada. A saudade do presencial é, na verdade, a saudade do imponderável, do que escapa ao controle da grade horária e do conteúdo programático. É ali, nesse resto que não cabe no PDF, que se forja a sensibilidade jurídica.

Se queremos formar juristas aptos a intervir no mundo, e não apenas a interpretá-lo, precisamos devolver ao Direito sua carne, sua voz, sua escuta. Isso exige a volta da presença como regra, não exceção. A presencialidade não é nostálgica, é política. Reafirmá-la é afirmar que o Direito só pode ser aprendido onde se pode experimentar a pluralidade, a dissensão e a escuta real do outro.

Voltar ao presencial é, portanto, reencenar a universidade como espaço de atravessamento e não de confirmação de identidades. É investir na formação de um sujeito jurídico que não teme o conflito, mas sabe escutá-lo. Que não se protege da diferença, mas a reconhece como campo de aprendizado. É esse o tipo de jurista de que precisamos. E é esse tipo de jurista que só o ensino presencial pode ajudar a formar. Presença não é apenas estar junto, mas deixar-se atravessar.

Eliseu Raphael Venturi é pós-doutor em direito e novas tecnologias.


[i] “Um dos grandes desafios da teoria jurídica contemporânea tem sido produzir um corpo de abordagens em torno ao fenômeno jurídico que, sem reduzi-lo às construções dos positivismos jurídicos, mas, ao mesmo tempo, sem prescindir das indispensáveis contribuições deles, possa manejar o horizonte alargado da problematização jurídica, a partir das aberturas ao mundo dos fatos e dos valores às questões da normatividade jurídica” VENTURI, Eliseu Raphael. Tradução livre do resumo das 24 lições extraídas da perversão jurídica no nacional-socialismo.

GGN Brasil, 23/01/2019. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/artigos/traducao-livre-do-resumo-das-24-licoes-extraidas-da-

perversao-juridica-no-nacional-socialismo-por-eliseu-raphael-venturi/>. Acesso em: 19 maio 2025.

[ii] “Não questionar, não problematizar, não duvidar, não criticar, não debater, não analisar, não controverter, não refletir, não argumentar, não interpretar, não pretender compreender, não buscar, não historicizar, não pensar! Uma dádiva para aguentar uma produção alienada, seguida de um lazer alienado, seguido de uma existência alienada. Ter o corpo dado, a linguagem posta, a estética servida, a ética encerrada, a política perfeita, a sexualidade localizada, o erotismo contido, o sexo impraticado, a morte certa, a vida perdida, o destino desenhado nas estrelas ou nas areias” VENTURI, Eliseu Raphael. Haja Sócrates! A utilidade da não-filosofia, por Eliseu Raphael Venturi. GGN Brasil, 06/05/2019. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/artigos/haja-socrates-a-utilidade-da-nao-filosofia-por-eliseu-raphael-venturi/>. Acesso em: 19 maio 2025

[iii] ARENDT, Hannah. O que é política? Tradução de Reinaldo Guarany. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 21 e p. 24.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 21/05/2025