A ditadura militar brasileira nos anos 1970, o ­período do Grande Terror do stalinismo na antiga União Soviética, o governo teocrático do Irã contemporâneo. O que esses três regimes totalitários possuem em comum? Foram tema dos filmes mais badalados no Festival de Cannes deste ano, encerrado no sábado 24.

A obra-prima It Was Just An Accident, do iraniano Jafar Panahi, ganhou a Palma de Ouro, enquanto o brasileiro O Agente Secreto faturou os prêmios de Melhor Direção para Kleber Mendonça Filho e o de Melhor Ator para Wagner Moura, além de ter sido escolhido o melhor filme desta edição pela Federação da Crítica Internacional (FIPRESCI). Two ­Prosecutors, do ucraniano Sergei Loznitsa, não levou nada, mas mereceu amplos elogios e o reconhecimento da crítica.

Cannes, portanto, voltou a valorizar o cinema político, como se o júri, presidido pela atriz francesa Juliette ­Binoche, quisesse redimir-se do ano passado, quando foi encabeçado pela atriz e diretora americana Greta Gerwig, e deu a ­Palma de Ouro para a comédia dramática ­Anora. O contundente A Semente do Fruto Sagrado, do iraniano Mohammad Rasoulof – cineasta que, condenado a oito anos de prisão, teve de fugir do país para conseguir exibir seu filme – ficou apenas com um prêmio especial de consolação.

Com a Palma concedida para It Was Just An Accident, Jafar Panahi, diretor de longas-metragens como 3 Faces (2018), Táxi Teerã (2015) e Isto Não É Um Filme (2011), entrou para o seleto rol dos cineastas que venceram Cannes, Veneza e Berlim. O novo filme, rodado clandestinamente, foi inspirado nos relatos de tortura e violência que ouviu de seus ex-companheiros de cela nas vezes em que esteve encarcerado como prisioneiro político. Ele nunca havia sido tão explícito e direto na crítica ao regime.

Foi como se o júri quisesse redimir-se de 2024, quando o prêmio principal foi para a comédia dramática Anora

Panahi parte de uma premissa singela – o atropelamento de um cachorro numa estrada – para trazer à tona a violência com que o governo iraniano trata os opositores. O acidente danifica o carro e leva o motorista à oficina onde trabalha Vahid, que, ao ouvir o ruído da prótese da perna mecânica do dono do veículo, identifica-o como sendo o homem que o torturou quando esteve encarcerado. Enfurecido, o sequestra e está prestes a enterrá-lo vivo quando é acometido pela dúvida: e se aquele sujeito que jura inocência for mesmo apenas um pai de família?

Vahid resolve alertar outras vítimas do suposto torturador, entre elas uma fotógrafa de casamento e a noiva que participa da sessão de fotos. Todos sofreram experiências traumáticas pelas mãos do mesmo agente, mas, como tinham os olhos vendados, não conseguem ter certeza da identidade do torturador. As lembranças são as mais terríveis possíveis – a violência nunca é mostrada e choca ainda mais, já que o espectador precisa materializar o horror em sua imaginação a partir dos relatos.

O diretor quebra a tensão extraindo humor da situação insólita que é um grupo percorrendo a cidade em uma van com um sujeito preso dentro de um caixão e um casal de noivos vestido a caráter. Uma série de dilemas éticos e morais que envolvem empatia, remorso e vingança se sucede, além de pequenos exemplos da corrupção cotidiana, como guardas que aceitam propina com maquininhas de débito, o que aproxima a rea­lidade iraniana da brasileira – O Agente Secreto começa com uma cena semelhante, só que os policiais precisam contentar-se com alguns cigarros porque os anos 1970 ainda eram analógicos.

Já em Two Prosecutors, Sergei ­Loznitsa, dono de uma sólida carreira como documentarista e diretor de ficção, conhecido pelo olhar bastante crítico a governos totalitários como o soviético e à ofensiva russa sobre a Ucrânia, acompanha Kornev, um jovem procurador recém-empossado, disposto a investigar uma denúncia de tortura e maus-tratos cometidos pela polícia secreta de Stalin contra um prisioneiro político.

Dramas femininos. La Petite Dernière, que rendeu a Palma de melhor atriz para Nadia Melliti, é um dos vários filmes selecionados para a competição a tratar de dilemas vivenciados por mulheres – Imagem: Festival de Cannes 2025

Começa assim uma espécie de via-crúcis kafkiana sob a sombra de uma constante sensação de tensão e ameaça. Após uma longa negociação para ter acesso ao prisioneiro, o jovem idealista ­Kornev é alertado pela presença de contrarrevolucionários na polícia secreta. Ele faz então uma longa viagem até Moscou para levar a denúncia até o poderoso procurador-geral. O que acontece a partir daí é reflexo do alto custo que a busca pela verdade cobra nas entranhas do stalinismo.

A relevância da mensagem política trazida por esses filmes e os holofotes sobre eles acabaram deixando em segundo plano outro tema presente em quase metade dos títulos selecionados para a competição: os dramas femininos.

Foram muitas as histórias tendo mulheres como protagonistas, em abordagens que refletem angústias e dilemas contemporâneos. Entre tantas ótimas atuações femininas, o júri deu o prêmio de melhor atriz para Nadia Melliti, francesa de origem argelina que protagoniza La Petite Dernière, de Hafsia Herzi. Ela interpreta uma jovem lidando com a descoberta e a afirmação de sua homossexua­lidade. É uma ótima atuação em um filme apenas bem-intencionado, que peca pelo excesso de didatismo.

Já o prêmio de melhor roteiro foi para Jeunes Mêres, reconhecendo a importância do cinema humanista dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, que aqui acompanham o drama de cinco adolescentes enfrentando as várias questões da maternidade precoce. Outro aspecto da maternidade, a depressão pós-parto, mereceu tratamento instigante por parte da diretora Lynne Ramsey em Die, My Love, estrelado pela atriz hollywoodiana Jennifer Lawrence.

Relações entre filhas e pais ausentes também foram tratadas de forma delicada em filmes como o espanhol ­Romería, de Carla Simon, em que uma jovem órfã empreende uma jornada de autoconhecimento enquanto tenta descobrir mais detalhes sobre o pai, ou em ­Sentimental ­Value, do norueguês ­Joachim Trier, vencedor do Grande Prêmio do Júri (equivalente ao segundo lugar).

Estrelado pela mesma Renate ­Reinsve que ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes pelo filme anterior de Trier, A Pior Pessoa do Mundo (2021), o longa-metragem vale-se de uma atmosfera bergmaniana (porém, mais leve) para abordar a história de um cineasta veterano que planeja retomar a carreira e quer que o filme seja protagonizado pela filha, com quem ele mal fala há anos.

Um filme iraniano no qual as atrizes usam o hijab, o véu islâmico, foi alvo de protestos

Houve, por fim, Woman and Child, filme iraniano de Saeed Roustaee, que uniu o drama feminino com a mensagem política. Ele foi alvo de protestos por parte da Associação Iraniana de Cineastas Independentes, pelo fato de trazer personagens femininas que se vestem com o ­hijab (o véu islâmico), o que caracterizaria o filme como “propaganda do regime”.

O que vemos na tela é, porém, o oposto. Uma viúva com dois filhos pequenos tenta reconstruir sua vida e é abalada por elementos desencadeados por uma tragédia pessoal. A trama expõe a estrutura patriarcal opressora característica da sociedade iraniana, facilitada e estimulada pelas leis do governo teocrático.

O diretor, que, assim como Panahi, já esteve preso, contra-argumenta que a concessão ao hijab foi o meio de driblar a proibição de se filmar no país sem sofrer perseguição. Não fosse essa escolha, ele não poderia ter rodado em hospitais, escolas e outros lugares públicos previstos no roteiro.

O resultado pode nem ser tão empolgante como cinema, mas foi importante ele mostrar aos que protestaram sem sequer ter visto o filme que combater a censura com mais censura não é o melhor caminho. Cannes, tradicionalmente um espaço acolhedor para os perseguidos, ensinou mais esta lição. •

Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vocação política ‘

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Last Update: 29/05/2025