Quando Lula assumiu o terceiro mandato, havia 2,4 milhões de brasileiros na fila do INSS. Agora são 300 mil, o que leva o órgão a atender 40 milhões de beneficiários, entre aposentados, pensionistas e os favorecidos de forma assistencial. As despesas anuais da Previdência beiram 1 trilhão de reais, daí o “mercado” e seus porta-vozes midiáticos sempre a incluírem nas “ideias” para enxugar o orçamento federal, obsessão dessa turma. Vozes que nada falam, entre outras, da fábula gasta com os juros da dívida, dos privilégios da toga e da farda e de dois desfalques no INSS: isenções e calote. “O câncer da sociedade moderna são grupos elitistas que dominam e ficam com o grosso do dinheiro público”, diz Carlos Lupi, ministro da Previdência, na entrevista a seguir.
CartaCapital: O que o senhor acha da pressão do “mercado” e da mídia para o governo cortar gastos? A Previdência está sempre na mira.
Carlos Lupi: Não vejo uma discussão profunda, porque todo mundo tem medo, mas eu quero discutir: e as pensões e aposentadorias dos militares? E as aposentadorias do Poder Judiciário? Por que tem que discutir a situação de alguém que ganha, em média, 1.860 reais por mês? “Ah, porque o contingente é muito grande”. Mas a Previdência faz distribuição de renda para quem precisa. Essa é a discussão que a mídia, os grandes especialistas do apocalipse deveriam fazer. Alguém fala que 40 milhões de brasileiros são beneficiados pela Previdência?
CC: O debate não tem pessoas, tem planilhas.
CL: Quando se trata de ser humano, o debate não pode ser travado como déficit. Quarenta milhões de pessoas é uma Argentina, são 20% da população. Hoje, mensalmente, investem-se na Previdência 65 bilhões de reais e, em média, de 22% a 30% desses recursos voltam para o governo como imposto direto ou indireto. Sessenta por cento dos municípios quebrariam sem a Previdência, pois neles o peso da Previdência é maior do que o do Fundo de Participação dos Municípios. A cadeia produtiva da Previdência é altamente democrática e incentivadora da economia. Isso tudo tem de ser considerado. Mas, não, a discussão é ideológica. Fala-se da Previdência, mas não se fala de quanto o Brasil paga de juros da dívida pública com essa taxa de juros absurda (do Banco Central). É mais fácil não mexer com poderosos. Vão mexer com os poderosos do Judiciário? Eles têm caneta, mandam prender, mandam soltar, julgam… Nós estamos discutindo os grandes marajás que não estão no INSS?
CC: Quem são esses marajás?
CL: Não são do INSS, que têm um teto de 7,2 mil reais. Tem gente que ganha 40 mil, 50 mil, e não é do INSS, eu te afirmo que não é. Alguém está discutindo isso? Alguém está discutindo as isenções fiscais?
CC: Que isenções atacaria primeiro?
CL: Isenção só pode ser dada a quem oferece alguma contrapartida. O que chamo de contrapartida é quanto o Estado ganha com a isenção. Um exemplo: quantos empregos a empresa beneficiada por isenção está garantindo. Outra coisa, o setor agropecuário. Normalmente, não paga imposto nenhum e, quando paga, é pouco. Na minha área então, assustadoramente, ou é isento ou é pequeno. Tem contrapartida? Tem. Na balança comercial é o setor mais importante. Mas são grandes conglomerados. Há pequenas cooperativas que fornecem para esses grandes grupos e são esses grandes grupos que ganham com as exportações.
CC: E quanto aos devedores, é algo para ser atacado prioritariamente? A AGU e a Previdência vão montar uma espécie de força-tarefa para cobrar essas dívidas?
CL: Dívida, para quem tem como pagar, é só ser duro. Para quem não tem, é acordo. Hoje, o INSS é o maior latifundiário do Brasil, tem muitas propriedades, muitos terrenos, muitos prédios valiosos. A empresa faliu e teve que deixar um patrimônio como garantia da dívida, por exemplo. Por que não pode ser feito isso com todas as dívidas? Tem algumas empresas grandes, grandes mesmo, que estão na ativa e não pagam. É assustador ver quais são os maiores devedores. O trabalho que a gente vai fazer é sentar e negociar. Se não pagar, não pode ter financiamento (público), não pode exportar.
“Os grandes marajás não estão no INSS”
CC: A ideia de desvincular reajustes do salário mínimo daquilo que o INSS paga está enterrada de fato, após as declarações recentes do presidente?
CL: Sabe quando o Lula vai trair sua natureza, sua origem, sua história, sua biografia? Nunca. Lula é um filho de migrante nordestino, um homem que venceu em São Paulo nas décadas de 60, 70, como muitos brasileiros, pertence a essa base da sociedade que não é orgânica. Você tem especialistas para tudo, mas nunca vai ver um especialista defender a massa. O voto dessa base popular pode ir para o Bolsonaro, como pode ir para o Lula. Pela barreira ideológica, pela política de costumes, quem tem uma religião mais ortodoxa vai para o Bolsonaro, quem não tem vai para o Lula.
CC: O economista Fábio Giambiagi produziu um estudo, segundo o qual a política de valorização do salário mínimo vai significar 100 bilhões a mais de gastos para a Previdência em quatro anos. E fez isso para defender corte de gastos. O que acha?
CL: Pergunto a esse grande economista se ele calculou quanto significam as perdas com o pagamento de juros por causa da alta taxa mantida pelo Banco Central. Ele calculou quanto significa de perda para a saúde, para a educação? Por que a discussão só pode ser sob a ótica do mais fraco ser oprimido e do opressor dizer que tem de ser assim? Mudou, o Bolsonaro saiu do governo, chega. Ou a gente começa a discutir com profundidade com a sociedade ou ele (Bolsonaro) volta.
CC: O que a Previdência pode fazer por conta própria, independentemente dessas pressões? Como será, por exemplo, essa revisão de benefícios a partir deste mês?
CL: A palavra não é revisão. Temos a obrigação constitucional, legal, de a cada dois anos fazer a verificação da procedência, da legalidade e da regularidade dos benefícios concedidos provisoriamente. Você tem, e não é pequena quantidade, aposentadorias temporárias por invalidez, tem benefícios permanentes por saúde…. Então, o que a lei faculta? Que a cada dois anos todos esses benefícios sejam checados. É isso que a gente está começando a fazer, com um efetivo de 150 funcionários. Vamos dobrar esse efetivo. •
Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bode expiatório’