Há vários anos na liderança do ranking nacional de desmatamento, o Cerrado é o segundo bioma mais explorado do País para a expansão de pastagens. A região também abriga o maior rebanho bovino do Brasil, dado apontado por especialistas como um dos principais fatores da degradação da vegetação local e do aumento das emissões de gases de efeito estufa. Somente em 2024, mais de 650 mil hectares de mata nativa foram destruídos, o que corresponde a mais de 50% de todo o desmatamento registrado no ­País, segundo um levantamento divulgado pelo MapBiomas em maio.

O Cerrado é responsável por significativa parte da produção e distribuição de carne bovina comercializada por grandes redes de supermercado em todo o Brasil, além de manter uma forte conexão com o mercado externo. Para se manter na liderança desse setor, no entanto, pecuaristas e frigoríficos da região terão de se adaptar a regras socioambientais cada vez mais rígidas, exigidas por importadores e grandes mercados consumidores – uma tendência em alta em todo o mundo, principalmente nos países da União Europeia.

Atentas a essas exigências, algumas empresas já começaram a aderir ao “Protocolo do Cerrado”, lançado há pouco mais de um ano. O documento estabelece critérios para a compra responsável de gado criado no bioma. Os signatários se comprometem com o desmatamento zero, o respeito a territórios indígenas, quilombolas e unidades de conservação, além de manter regularizado o Cadastro Ambiental Rural. Também não podem ter pendências no Guia de Trânsito Animal nem estar incluídos na “lista suja” do trabalho análogo à escravidão. Em 2024, os pecuaristas da região foram responsáveis por 25% dos flagrantes de trabalho escravo no País, envolvendo 85 trabalhadores resgatados.

O bioma concentra o maior rebanho bovino do País e também a maior área desmatada

De acordo com informações da Radiografia da Pecuária do Cerrado, estudo recém-lançado pelo projeto Do Pasto ao Prato, apenas cinco frigoríficos – JBS, Minerva, Marfrig, Frigol e Masterboi – assinaram o protocolo. Apesar de serem líderes nesse segmento, eles representam apenas um terço da perda de vegetação associada à pecuária na região e 38,8% da capacidade de produção do Cerrado. Dois em cada 3 hectares do bioma seguem desprotegidos.

Além dos frigoríficos, o compromisso também foi assumido por duas redes varejistas, o Grupo Pão de Açúcar e o Carrefour Brasil, e pela Arcos Dourados, responsável pelos restaurantes do McDonald’s no Brasil. Considerando a estimativa da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), de que o setor reúne mais de 1,2 mil empresas, os autores do estudo concluem que uma grande fatia do varejo ainda comercializa a proteína bovina sem política de rastreamento de seus fornecedores – há 225 abatedouros no bioma.

“A produção de gado no Brasil é considerada extensiva, mas tem baixa rastreabilidade. O Cerrado tem o potencial de aumentar ainda mais a produtividade, mas precisa melhorar a qualidade do pasto, diminuir o desmatamento e as emissões de gás de efeito estufa. O Protocolo do Cerrado nasce com esse propósito”, salienta Cecilia Korber, diretora-adjunta de projetos e programas na Proforest, ONG que coordena a iniciativa. Ela ressalta que a adesão ainda é incipiente, mas que tende a crescer nos próximos meses.

“O protocolo é voluntário e a gente percebe uma curva de conhecimento ainda em ascensão. A ideia é expandir a adesão para chegar a pelo menos 160 frigoríficos até o início do ano que vem e alcançar os varejistas”, explica. A expectativa é de que as empresas vinculadas à Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) e à Abras subscrevam o compromisso, expandindo o controle sobre áreas com altas taxas de desmatamento, assim como fizeram com o protocolo Boi na Linha, na Amazônia. A Abiec representa 98% das exportações do setor, além de uma grande fatia do mercado doméstico.

Como forma de ampliar a participação dos pecuaristas, a Proforest está promovendo oficinas em diversas localidades. A primeira foi realizada em Campo Grande (MS), em 11 de junho. No dia 25, a atividade ocorrerá em Belo Horizonte (MG) e, em julho, será levada a Cuiabá (MT), São José do Rio Preto (SP) e Goiânia (GO). A programação será encerrada dia 8 de agosto, em Palmas (TO). Dari Santos, coordenadora de impacto do projeto Do Pasto ao Prato, explica que a relação entre a pecuária e o desmatamento está presente em toda a cadeia de produção de gado, não se restringindo às fazendas de abate. “Os animais passam por várias propriedades antes de serem mortos e, geralmente, o monitoramento é feito apenas no local do abate”, diz. Com isso, grande parte do desmatamento associado às etapas anteriores fica fora do controle.

“A gente sabe que o gado não nasce e cresce na mesma fazenda. Existem fluxos: fazendas de cria, de recria, de engorda e de abate. São instâncias auxiliares, fornecedoras indiretas, e esse ciclo todo ainda não está sendo monitorado, apesar de concentrar grande parte do desmatamento”, observa Dari. “Precisamos de mecanismos para aprofundar o rastreamento entre os fornecedores indiretos, que é onde o gado nasce e engorda antes de chegar à fase de abate. E também onde as informações são completamente opacas.”

Há monitoramento nos locais de abate, mas não em toda a cadeia produtiva

Para Lisandro Inakake, gerente de projetos em Cadeias Agropecuárias do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), o Protocolo do Cerrado representa um avanço importante ao organizar a atuação da cadeia de valor da carne na compra de gado, criando padrões que os pecuaristas podem seguir. “Ele qualifica as empresas a se comunicarem melhor com o setor produtivo que está sendo pressionado, criando um ambiente mais propício à realização de auditorias. Com isso, permite identificar quais empresas cumprem a legalidade na origem do gado e quais não”, avalia.

“Se a empresa implementa o protocolo, conseguimos replicar o movimento que já ocorre na Amazônia, onde fazendas e frigoríficos demonstram como operam, avaliam riscos e tomam decisões de compra, buscando eliminar o desmatamento de suas cadeias. Esse é um valor que o protocolo pode agregar”, diz Inakake. Ele lembra que, a partir do início do próximo ano, a União Europeia vai embargar produtos que não atendam às exigências socioambientais, o que pode comprometer a produção de boa parte das empresas brasileiras.

Dari Santos reconhece a importância dos embargos internacionais, mas ressalta que 70% da carne produzida no Brasil é destinada ao mercado interno. “O problema não será resolvido apenas com sanções externas. Essas medidas podem atingir alguns mercados e frigoríficos voltados à exportação, mas aqueles que operam nas margens, comprando de fazendas com forte histórico de desmatamento, continuarão funcionando normalmente.” •

Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Virou pasto’

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Last Update: 18/06/2025