O palestino Rasheed Abueideh, desenvolvedor de videogames da cidade de Nablus, não ficou impassível diante do sofrimento de seu povo na Faixa de Gaza, onde mais de 45,5 mil moradores foram massacrados por Israel desde o início da contraofensiva. A inação global levou-o a criar uma campanha de arrecadação para financiar seu projeto Dreams on a Pillow (Sonhos em um Travesseiro). O tempo do jogo se passa durante a Nakba, período de cerca de um ano e meio, entre dezembro de 1947 e julho de 1949, em que cerca de 750 mil palestinos, metade da população no fim da década de 1940, foram expulsos de suas casas e em que mais de 500 vilas foram destruídas.
O game, diz Abueideh, estava engavetado em 2017 por falta de financiamento. “Um projeto desses jamais seria financiado por meios tradicionais, por isso recorremos ao crowdfunding. Para além da natureza dessa ideia, a Palestina não é o lugar ideal para desenvolver jogos, devido às limitações de movimento, conexões e financiamento. Esse trabalho leva tempo e esforço repetido para aperfeiçoar a fórmula e encontrar um nicho de mercado, um luxo que simplesmente não temos.”
Dreams on a Pillow é um jogo em estilo aventura em 3D, inspirado em um conto popular palestino que se passa durante a limpeza étnica de 1948. Há variações na narrativa, mas existe uma base consensual na estrutura da história. No jogo, assumimos o papel de Omm (mãe, em árabe). A jovem mãe tem o marido assassinado pelas forças sionistas. Em meio à violência, ela corre para resgatar o seu bebê recém-nascido. E, em meio ao pânico, ela agarra, no entanto, um travesseiro em vez da criança. E começa uma trajetória de trauma, ansiedade, desespero e luta pela vida de Omm em diferentes cenários do território.
A importância de um jogo sobre a Nakba, afirma o desenvolvedor, estaria nas falhas da cobertura da mídia ocidental. “Ela sempre tenta esconder a história, retratando-a como um tema ‘complicado’.” O que ocorre na Palestina não é nada complicado, diz ele. “A Nakba é a raiz de tudo, assim é possível entender o que ocorre no território e por que ocorre.”
O israelense Ilan Pappè foi responsável por um dos maiores estudos sobre a catástrofe, Ethnic Cleansing of Palestine, originalmente lançado em 2006. O historiador analisa o atual estágio de conscientização sobre o período no qual as forças sionistas colocaram em curso o esforço de expulsão da população nativa: “Em termos de sociedade civil global, incluindo muitos centros acadêmicos, estamos em uma situação muito melhor. Essa consciência está, porém, ausente da mídia tradicional e totalmente ausente do discurso de autoridades políticas”. Isso tem implicações contemporâneas. Para o historiador, ignorar ou negar a Nakba “significa que você não oferece o contexto para o atual genocídio. Sem esse contexto, as elites políticas do Norte Global continuam a alegar que as ações israelenses são de autodefesa e não o que de fato são, políticas contínuas de eliminação do projeto de colonização israelense”.
A revista The Economist previa, em 2023, que o setor da indústria de jogos eletrônicos seria o maior na indústria de entretenimento até 2026. De longe, ele ultrapassa o cinema e a música, e só perde para a tevê paga. Diante da pergunta de qual o potencial de um jogo eletrônico em transmitir uma mensagem política, Abueideh responde: “Livros e filmes são instrumentos poderosos de contação de histórias, mas o engajamento interativo oferecido por jogos contém em si um potencial ainda maior. Quando usados efetivamente, jogos podem criar uma experiência profundamente emocional para os jogadores, imersiva, pessoal e inesquecível”.
O criador, Rasheed Abueideh, lançou uma campanha de crowdfunding para concluir o jogo
Em 2014, Abueideh criou o jogo Liyla e as Sombras da Guerra, experiência visual das escolhas que os palestinos devem fazer para sobreviver aos ataques e bombardeios israelenses. Era o ano da Operação Margem Protetiva, com 2.251 mortos em 50 dias. Em 2016, o jogo foi rejeitado pela loja da Apple. A corporação disse ao desenvolvedor que mudasse a descrição de Liyla de “Games” para “Notícias” ou “Referências”, pois o jogo era muito político. A decisão foi criticada, inclusive pelo fato de a Apple não ter rejeitado um jogo chamado Israeli Heroes (Heróis Israelenses). A divulgação do caso fez a Apple voltar atrás.
Pesquisador da história de videogames, Robson Bello acredita que a natureza interativa dos jogos oferece um potencial único. “O autor de um livro ou o diretor de um filme constituem uma narrativa que o leitor/espectador lê ou assiste. Já o programador de jogos estabelece um espaço com regras e narrativas que exige que o jogador/a interaja e entre em um universo ficcional, que se deixe transformar em um personagem nesse ambiente para solucionar os problemas. Então, esse/a jogador/a pode imergir em uma narrativa sobre um povo oprimido, adquirindo seu ponto de vista, e então entender quais são as suas possibilidades.”
Um dos cenários que o jogador terá de enfrentar em Dreams on a Pillow trata das atrocidades na vila de Al-Tantura. “Muitos massacres foram cometidos pelas gangues sionistas em diferentes vilas palestinas, para espalhar medo e fazer com que fosse mais fácil amedrontá-las para que deixassem suas casas. Massacres como os de Deir Yassin ou Safsaf. Com Tantura, quero construir uma forma de o jogador criar uma empatia. Outra razão é por sua beleza, como uma vila no Mediterrâneo. Queria que fosse uma demonstração da beleza natural da Palestina”, explica o criador.
O orçamento total do jogo chega a 495 mil dólares. Na atual fase de arrecadação, até a terça-feira 14, a campanha colocou como meta atingir 194,8 mil dólares para cobrir os custos da pré-produção e início da produção, mas na quarta-feira 8 o valor arrecadado passava dos 200 mil. O projeto tem um cronograma de dois anos para ser finalizado, ou seja, 2026. No crowdfunding, para os doadores, aparece uma cláusula pouco usual: adicionalmente, um plano claro para que o jogo seja completado é colocado para garantir a continuidade em caso de desaparecimento, ferimento ou morte de Abueideh nas mãos da “agressão israelense expansiva na Cisjordânia”. •
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vire uma mãe palestina’