“… As mães plantavam e comercializavam antes do colonialismo britânico… O comércio era uma atividade exclusivamente feminina…” – Chimamanda Ngozi Adiche.
A autora se refere à vida na Nigéria, nas regiões do Sul, onde predominava a etnia igbo, antes da chegada dos colonizadores ingleses que, ao contrário do que dizem, trouxeram atraso, não avanço, na libertação feminina e em outros campos.
Aliás, lendo João Cândido – Sonho e Castigo, de Mário Pepo Santarém, damo-nos conta de que o Almirante Negro, que liderara a Revolta da Chibata contra os castigos corporais na Marinha, em 1910, também bordava, assim como o Bispo do Rosário, ambos coincidentemente internados no então Hospício de Alienados, com décadas de diferença.
Ou seja, o preconceito de que homem não borda não se aplicava aos homens pretos, de cultura africana, ao contrário dos brancos, “ocidentais”, trancados em seus usos e costumes patriarcais.
Pior, o sistema patriarcal, político e cultural, que herdamos dos portugueses, conduziu-nos a absurdos como a primeira Constituição republicana, de 1891, que não reconhecia o direito de voto às mulheres, aos negros, aos mendigos, aos analfabetos e aos subalternos da Marinha e do Exército, como aquele autor, oportunamente, recorda, na obra citada.
Como não sermos um país tão desigual, violento e inculto, com essas raízes podres, de pouco mais de um século atrás?
Sobre a colonialidade e em véspera de Conclave, vale citar o cardeal português José Tolentino Mendonça, que em O Tesouro Escondido (editora Paulinas) nos aclara: “Há um discurso célebre de um índio, no continente americano, que, denunciando a avidez pela posse dos ‘homens brancos’, diz que ‘o homem branco’ torna Deus mais pobre”.
De fato, com seus sapatos pretos, gastos, Francisco não exaltou todos nós? Não nos tornamos melhores, mais capazes de humildade, menos consumistas, mais próximos do Francisco de Assis e de Jesus, em última instância?
A exemplo de Francisco, o cardeal português exorta-nos ao entendimento do que significa estar “em saída”, como Francisco queria que estivesse sua igreja.
Na obra referida, Tolentino Mendonça discorre:
“O escritor de viagens Bruce Chatwin, que escreveu muito sobre o espírito da viagem, confessa na sua obra Anatomia da Errância que a pergunta-chave de que devemos partir é a seguinte: ‘Por que é que os homens se deslocam em vez de ficarem quietos?’. Essa pergunta reconduz-nos, como veremos, ao centro do mistério do próprio homem…As viagens nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o homem viaja. Seria não perceber o fundo do ser humano, por exemplo, não identificar em toda esta inquietação que se apodera dele nos meses de verão o desejo de mais, de ir mais longe. Deslocar-se implica uma mudança de posição, uma maturação do olhar, uma abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens, um confronto, um diálogo tenso ou deslumbrado, que deixa necessariamente impressões muito fundas. A experiência da viagem é a experiência de fronteira e do aberto, de que o homem precisa ser ele próprio. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de nós próprios e do mundo. É a nossa consciência que deambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez. A viagem é uma espécie de propulsor desse olhar novo. Por isso, é capaz de introduzir na nossa vida e nos seus quadros, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem operar aquela recontextualização radical que, em vocabulário cristão, chamamos ‘conversão.”
Sim, viajamos para melhor nos conhecermos, só somos inteiramente quando em confronto e diálogo com o outro, excetuados os (as) santos (as) eremitas.
Por isso, Francisco exortava-nos a fazer pontes, não muros, como o decano do Colégio de Cardeais, Giovanni Batista Re, lembrou na homilia de corpo presente do Papa Francisco, no sabado último, estando presente ninguém menos que o maior fazedor de muros, Donald Trump.
Sobre o desfile de cabeças coroadas, ouros e rendas que vimos nas exéquias de Francisco, em contraste a humildade e simplicidade do Papa, vale notar as raízes do chamado Ocidente e de Roma, particularmente.
Em Narrativa e Cultura Popular no Cristianismo Primitivo (editora Paulus), Paulo Nogueira relembra: “…os historiadores não têm dificuldade em afirmar que as elites no Império Romano não passavam de 1% dos habitantes, ou seja, praticamente 99% da população pertencia aos grupos subordinados, uma vez que não havia no mundo antigo um estrato social de tipo classe média”.
Com efeito, aquela cerimônia fúnebre permitiu aquilatar as duas faces do cristianismo e o esforço homérico que o Papa Francisco empreendera para resgatar as origens sadias da crença no Carpinteiro Ressuscitado.
Paulo Nogueira recorda: “O cristianismo se originou dos grupos destituídos da Palestina nos anos 30 e 40 d.C., e até o final do primeiro século já havia se disseminado por várias partes do Império, nas quais comunidades foram fundadas igualmente entre grupos de destituídos. Entre uma exceção e outra, os membros de suas comunidades provinham dos estratos inferiores, sendo talvez a maior variação entre as origens e a primeira expansão o fato de que um movimento rural, ele se tornou predominantemente urbano”.
Atualmente, quando, novamente, 1% da população do globo detém mais renda que os outros 99%, cabe indagar se um outro Francisco virá para nos acompanhar na difícil travessia de uma sociedade tão injusta, fechada, plena de preconceitos para a utopia do paraíso terrestre em que a justiça, a paz e a verdade ressuscitem soberanas.