20 anos da missão no Haiti: para não esquecer

por Luís Carlos Silva[1]

            Faz vinte anos da criação, pelo Departamento das Nações Unidas para Operações de Manutenção da Paz, da chamada MINUSTAH, sigla que denomina a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti. Foi a partir dos meses seguintes que, então orgulhosamente, o Exército brasileiro passou a comandar tropas da ONU na missão, formadas por contingentes de diversos países, inclusive da América Latina. Durante seus treze anos cerca de 37 mil soldados brasileiros foram enviados ao Haiti. A participação e o comando da empreitada eram vistos como uma presença maiúscula do país numa ação da comunidade internacional e capaz de angariar prestígio. Os resultados, no entanto, parecem ter sido diferentes do esperado e, por isso mesmo, nem esquerda nem direita gostam de mencionar o assunto, que fica apagado da memória dos acontecimentos recentes.

            É importante conhecer, ainda que ligeiramente, a história toda. O Haiti, antiga colônia francesa na América Central, foi um dos primeiros países a abolir a escravidão (em 1789), por meio de uma revolução organizada pelos próprios escravizados. A repressão foi violenta, mas os insurgentes mantiveram suas posições e afinal se impuseram. É bem verdade que, ao longo dos anos, o interesse do capital internacional acabou prevalecendo e o país manteve sua rotina de divisão abismal de classes, seguindo a escrita das ex colônias do continente. Cobrado de uma “indenização” bilionária pela França pela independência, ficou condenado à pobreza e apresenta um dos piores índices de desenvolvimento humano das Américas. Foi palco de uma dessas ditaduras-padrão do terceiro mundo entre 1957 e 1986. Ocorre que em 1990 chegou à presidência Jean-Bertrand Aristide, um padre progressista, simpático à Teologia da Libertação, que tentou, por mais de uma década, implantar um programa de distribuição de renda e redução de desigualdades e, como costuma ser, foi confrontado por forças apoiadas pelo grande capital, até que terminou sumariamente coagido, pelos EUA disse ele, a deixar o governo e o país. Seguiu-se um compreensível período de instabilidade e, por conta dessa crise que o próprio imperialismo criou, a ONU, seu braço político, decidiu “estabilizar” o Haiti. Leia-se: impedir a ascensão de governos de esquerda, manter o acúmulo da riqueza da burguesia local e garantir os lucros do capital internacional.

            Nesse contexto é que surge a MINUSTAH. Durante sua vigência era previsto que os recursos destinados ao Haiti seriam administrados pela missão. De seu lado, o Exército brasileiro gostou da perspectiva de, após duas décadas no limbo, retomar seu protagonismo e se reorganizar politicamente como um verdadeiro partido fardado. Deu certo. O primeiro comandante da missão foi o general Augusto Heleno. Em 1970 Heleno, quando instrutor da AMAN, conheceu Jair Bolsonaro; em 1977 era ajudante de ordens do general Sylvio Frota, ministro do Exército que, em tudo vendo a “ameaça comunista”, sabotava a abertura política operada pelo presidente Ernesto Geisel, que afinal o demitiu, numa das ações mais estratégicas e marcantes do começo do fim da ditadura militar. Anos mais tarde, Heleno tornou-se ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro. O jornalista Leonardo Sakamoto[2] aponta outros militares, todos ocupantes de cargos no mesmo governo, como tendo participado da missão no Haiti: Tarcísio de Freitas, Carlos Alberto Santos Cruz, Floriano Peixoto, Luiz Eduardo Ramos, Fernando Azevedo e Silva, Edson Pujol, Otávio Rêgo Barros, José Arnon dos Santos Guerra, Freibergue Rubem do Nascimento. A atuação conjunta no Haiti produziu nas altas esferas militares, um amálgama que os unificou sob a bandeira abstrata do anti-comunismo, do destino manifesto do Ocidente para liderar o mundo e, como base de tudo, da proeminência do capital privado.

            O partido militar, então consolidado, passou a ter presença, direta ou indireta, em fatos significativos da vida política brasileira. Esteve atento aos movimentos de junho de 2013, marcados pela violência da PM, e soube ajudar a convergir suas pautas para temas que uniam a extrema direita; presente esteve na logística do golpe que derrubou Dilma em 2016 – do que é sintoma a exaltação, sem consequência alguma, do então deputado Bolsonaro ao torturador Ustra ao votar pelo impeachment; começou a ocupar o governo com Temer e concluiu a ocupação com Bolsonaro, chegando ao cúmulo de conseguir se tornar instância consultiva dos procedimentos eleitorais. Essa máquina, disciplinada e operante, foi azeitada na missão do Haiti. A ação armada em nome da ONU fez do país centro-americano um laboratório da posterior ocupação da periferia do Rio de Janeiro quando Temer, já refém do partido militar, decretou intervenção federal no estado. O saldo foram cerca de 1500 mortos; o interventor, general Walter Braga Netto, mais tarde candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, teve mais de cem comandados, quando chefiava o Comando Militar do Leste, tomando parte na missão do Haiti. De salto em salto, o partido militar chegou às conhecidas reuniões com o já derrotado Bolsonaro em 2022, em que se discutia a possibilidade de uma ação contra a vitória de Lula, culminando com o desastrado 8 de janeiro de 2023, episódio em que fica difícil ocultar a ação ou a omissão de um sem número de militares, alguns apontados em investigações que se tornaram públicas, outros ainda escondidos no anonimato, que uma atávica conciliação política do progressismo brasileiro insiste em manter.

            Sob certo ponto de vista, a MINUSTAH funcionou perfeitamente: em 2016, um empresário foi eleito presidente do país e a “ordem” se restabeleceu. Da missão militar no Haiti, berço de toda a repentina solidez do partido fardado brasileiro, quase nunca se fala. É importante ver que brotaram inúmeras denúncias de abusos por parte das tropas, de violência física à sexual, contra a população pobre haitiana. Algumas fontes contabilizam grande número de mortos em ações da força armada naquele país, cujas condições urbanas projetam a miséria das favelas cariocas; episódio significativo é uma “operação de pacificação”, em 2005, na maior favela da capital, Porto Príncipe, conhecida como Cité Soleil. Centenas de soldados armados invadiram o bairro e o resultado foram 63 mortos, caso que foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com base em depoimentos de moradores; logo após um terremoto, uma gravíssima epidemia de cólera dizimou parte da população haitiana e há informações de que chegou ao país por via das tropas “de estabilização”. Contabilizam-se 2,5 bilhões de reais empregados pelo Brasil na missão, dos quais apenas 930 milhões foram ressarcidos pela ONU. Ou seja, o saldo de tudo, em termos de ganho nacional, é definitivamente negativo. Por isso os militares brasileiro evitam falar do assunto e não mais reivindicam papel de relevo no que fôra apresentado como uma missão internacional pacificadora. Com eles, a direita finge ter esquecido a coisa toda. A centro-esquerda, como se pode classificar a coalizão semi-progressista que está no governo, pelos mesmos motivos faz que não é com ela: afinal de contas, a missão foi aceita e desenvolvida nos governos Lula-Dilma. Mas para que a história não se perca e a memória não se corrompa, é preciso manter viva a lembrança da participação brasileira na missão do Haiti e, principalmente, das suas consequências no quadro político nacional.

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[1] Membro fundador do Coletivo MP Transforma, Procurador de Justiça em S. Paulo e professor universitário.

[2] https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/07/07/missao-no-haiti-foi-celeiro-de-militares-para-o-ministerio-de-bolsonaro-.htm. Em 07/jul./2021.

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Última Atualização: 10/07/2024