
Durante os recentes ataques do Irã contra Israel, prefeitos brasileiros apareceram ao vivo em jornais e emissoras de TV do Brasil relatando o conflito direto de um bunker em Tel Aviv. Os gestores participavam de uma viagem bancada pelo governo israelense, oficialmente descrita como um “intercâmbio técnico”. O episódio, porém, evidenciou uma operação de propaganda com forte viés ideológico e comercial.
A viagem, totalmente financiada pela Mashav – a Agência Israelense de Cooperação Internacional –, foi promovida em parceria com o Instituto Internacional de Liderança Histadrut, ligado à federação sindical israelense. Segundo a Mashav, o programa incluiu hospedagem, alimentação, visitas técnicas e transporte. A comitiva contou com 11 políticos, majoritariamente de partidos de direita e extrema direita.
Entre os nomes estavam Álvaro Damião (União Brasil), prefeito de Belo Horizonte; Cícero Lucena (PP), prefeito de João Pessoa; Jhonny Maycon (PL), prefeito de Nova Friburgo; Gilson Chagas, secretário de Segurança de Niterói; e as vice-prefeitas Claudia Lira, de Goiânia, e Janete Aparecida, de Divinópolis (Avante). O principal destino era a Muni Expo, feira que discute soluções para cidades e segurança urbana.
A programação à qual o Intercept Brasil teve acesso mostra que a Muni Expo era apenas uma parte da agenda, que incluía visitas a áreas próximas à Faixa de Gaza, encontros com vítimas de ataques do Hamas em outubro de 2023 e até roteiros turísticos.
O foco declarado era “trauma, resiliência e caminhos para a reabilitação física e humana”, segundo os organizadores. O evento, contudo, foi adiado após os bombardeios do Irã, e os brasileiros deixaram Israel por terra em direção à Jordânia.
A feira também reuniria empresas israelenses de tecnologia de segurança, como a Tamildata, que atua no controle de comunicações em escolas, e a Reshef Security, especializada em equipamentos usados em postos de controle na Cisjordânia. O evento promovia a ideia de tornar os municípios protagonistas em segurança pública – pauta cada vez mais presente na política brasileira.

Essa tendência de municipalização da segurança se reflete no Brasil com o armamento das guardas municipais, o uso de tecnologias como reconhecimento facial e a criação de forças de elite municipais. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, alterações legislativas recentes permitiram ampliar os poderes dessas corporações.
Para o pesquisador Pablo Nunes, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), a visita reforça o interesse político de setores conservadores do Brasil em replicar modelos israelenses de vigilância, testados em contextos de repressão.
“Israel virou referência para exportação de tecnologias desenvolvidas no contexto da ocupação da Palestina”, afirmou. Nunes alerta que muitas dessas soluções são implementadas no Brasil sem debate público.
A estratégia de Israel inclui também jornalistas, que são convidados a visitar o país sob a condição de não entrarem na Faixa de Gaza. Segundo a jurista palestina Rula Shadeed, em entrevista ao Intercept em 2024, Gaza se tornou um “campo de testes” para a tecnologia militar israelense, usada posteriormente como argumento de venda internacional.
Exemplos disso já foram identificados no Brasil. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), sob o governo Bolsonaro, utilizou o software espião FirstMile – de uma empresa israelense – para monitorar alvos que iam de jornalistas a ministros do Supremo. Outras ferramentas desenvolvidas em Israel chegaram até a ser implantadas em escolas públicas de Alagoas.

Desde o início de seu mandato, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem investido pesado em tecnologia israelense. Segundo dados da Assembleia Legislativa, foram R$ 37,3 milhões gastos com empresas do setor, com destaque para a Cellebrite, fornecedora de software de extração de dados.
Tarcísio esteve em Israel em março deste ano, ao lado de Ronaldo Caiado (União Brasil), governador de Goiás. Ambos se reuniram com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Na ocasião, ele negou conotação ideológica da viagem.
“A gente tem uma parceria com o governo de Israel, parcerias importantes, compra de equipamentos, recebemos um convite. A gente tem uma excelente relação, estamos aceitando um convite e pronto”, disse. A visita, contudo, reforça os laços entre setores políticos conservadores brasileiros e o governo israelense.
O uso de tecnologias de segurança “testadas em combate” é o principal atrativo, segundo o jornalista Antony Loewenstein, autor do livro “Laboratório Palestina”. Ele afirma que o território palestino é transformado em um campo de demonstração para novos equipamentos de vigilância, posteriormente comercializados globalmente.
A presença de prefeitos brasileiros em Israel durante um momento de escalada militar intensificou o debate sobre o papel de governos locais na segurança e os interesses comerciais por trás dessas “missões técnicas”. A guerra, a vigilância e o lobby internacional se cruzam em uma pauta que, cada vez mais, envolve as administrações municipais do Brasil.