“O Negro é um dos três maiores rios do mundo”, diz, na apresentação de O Sentido das Águas, Drauzio Varella. O médico, que também é escritor, fez, nos últimos 30 anos, mais de cem viagens a esse rio com 2,2 mil quilômetros de extensão. Em seu leito há mais de mil ilhas. Em suas margens vivem ribeirinhos e indígenas pertencentes a mais de 23 etnias.

Se à Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, Drauzio chegou para fazer um trabalho voluntário de prevenção à Aids, ao Rio Negro ele chegou por meio de um projeto da Unip voltado à pesquisa de extratos que possam auxiliar no tratamento de doenças.

O que ele levou para ambos os lugares, além do saber científico, foi a capacidade de ver, ouvir e se relacionar com o outro e com o entorno. E o entorno, em O Sentido das Águas é a Região Amazônica, aquela que abriga a floresta com a maior biodiversidade tropical do mundo, mas também tem o menor IDH do País.

Diante dessa vastidão, o que fez o doutor Drauzio? Procurou alcançá-la até onde a vista vai, dando conta tanto da realidade social e humana quanto da espantosa natureza que ali reina.

Assim como fez em Estação Carandiru (1999), Carcereiros (2012) e Prisioneiras (2017), o médico transformou as pessoas que conheceu às margens do rio em personagens com rosto, jeito de andar e forma de falar e viver.

Por meio dele, tomamos contato com Papaguara, o homem que fez 64 partos e vivenciou a “escravidão por dívida” no extrativismo da piaçaba; Elisabel, filha de mãe indígena, que viu uma mulher de manto azul que ela garante ser Nossa Senhora do Bom Parto; e Américo, ribeirinho hábil na construção de casas que presenciou o tio perder o juízo ao receber o olhar encantador do boto-cor-de-rosa.

O Sentido das Águas. Drauzio Varella. Companhia das Letras (304 págs., 79,90 reais) – Compre na Amazon

Mas, em O Sentido das Águas, o autor experimenta também outras formas narrativas. Quando conta que viu emergir o corpanzil de um boto, ele faz lembrar um Júlio Verne (1828–1905) a desbravar as 20 mil léguas submarinas. Já quando analisa as espécies que sobrevivem em um ou outro ambiente ou descreve as briófitas, os vegetais mais antigos do planeta, remete às descrições do geógrafo Aziz Ab’Saber (1924–2012).

Ao olhar para o alto e ver as árvores brigando por raios de sol – sendo as mais altas as vencedoras nessa ­disputa –, Drauzio explicita, porém, que seus grandes guias são os naturalistas Charles Darwin (1809–1882) e Alfred Wallace (1823–1913).

A despeito do fascínio pelo “chão forrado por raízes que se entrelaçam”, ele olha também para as ruas escaldantes das cidades cheias de motos com um monte de gente na garupa e para o passado marcado pela violência dos invasores, a catequização, as epidemias de ­varíola e a febre do ouro.

Um dos textos do livro informa que, entre 1970 e 2020, o homem branco destruiu 20% da floresta. O que Drauzio parece desejar, com O Sentido das Águas, é nos ajudar a dimensionar o que significa essa destruição. •

Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Viagem ao leito de um rio’

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Last Update: 30/04/2025