O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.
Trata-se da coletânea “Alguma Poesia” (1930) que reuniu poemas escritos pelo escritor entre 1925/30, parte deles anteriormente publicados no Jornal Estado de Minas.
Essa obra contém poemas que ainda hoje são tão conhecidos que se pode dizer já fazem parte do imaginário popular brasileiro.
Quem nunca ouviu falar dos versos do poema “No meio do Caminho”?
No meio do caminho havia uma pedra
Havia uma pedra no meio do caminho
Havia uma pedra
No meio do caminho havia uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Havia uma pedra
Havia uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho havia uma pedra.
O mesmo pode se dizer do poema “Quadrilha”, bastante conhecido mesmo por pessoas não habituadas à leitura da poesia nacional:
João amava Teresa que amava Raimundo
Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
Que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
Que não tinha entrado na história.
Curiosamente, essa primeira obra do poeta de Itabira, hoje consagrada pelo público e pela crítica literária, foi ao seu tempo bancada do próprio bolso do escritor, denotando não ter sido o livro um grande sucesso ao seu tempo.
Foram inicialmente tiradas apenas 500 cópias pela Imprensa Oficial de Minas Gerais, onde Drummond trabalhava.
Antes do lançamento de “Alguma Poesia”, o poeta contou com a colaboração de Mário de Andrade, que não só havia se disposto a ajudá-lo na publicação desse primeiro livro, como havia sido a pessoa que incentivou Drummond a se lançar no mundo literário.
A amizade entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade iniciou-se no ano de 1924 quando chegou à Belo Horizonte um grupo de intelectuais paulistas que havia liderado o movimento modernista brasileiro, consubstanciado na Semana de Arte Moderna de 1922.
Dessa comitiva, fizeram parte Oswald de Andrade, Paulo Prado, Tarsila do Amaral, além do citado Mário de Andrade. Pretendiam fazer um périplo pelo Brasil para com isso dar vazão às propostas por eles enunciadas na Semana: o rompimento com a tradição parnasiana e toda literatura que replicava o estilo europeu, em detrimento de uma arte nacional, ainda que incorporando (através da antropofagia) as influências exógenas. Não se tratava de importar a arte estrangeira, mas assimilá-la criticamente, para criar algo novo, especificamente brasileiro, para exportação.
A viagem às Minas Gerais tinha como escopo assistir à Semana Santa nas cidades históricas mineiras e procurar vestígios do passado que colaborassem com projeto modernista de constituição de uma identidade nacional.
O que o movimento modernista postulava era a busca daquilo que singularizava o Brasil.
No nosso país, a independência política antecedeu a conformação da nacionalidade.
Ao contrário da experiência dos países europeus, aqui, não foi a nação que criou o Estado, mas o Estado que antecedeu a Nação. Desde a proclamação da independência em 1822 até a Revolução de 1930, o que hoje se denomina Brasil era antes uma somatória dos estados federativos, sem um claro sentido de unidade. E essa busca pela identidade brasileira, uma bandeira central do modernismo dos anos 30, irremediavelmente os levava à busca de nossas especificidades através da História.
(Não é por acaso que os três principais historiadores dos anos 1930, diretamente relacionados ao movimento modernista, escreveram suas principais obras tratando do Brasil em tempos coloniais. É o caso de Caio Prado Júnior com o seu “Formação Histórica do Brasil” (1942) É o caso de Sérgio Buarque de Holanda com o seu “Raízes do Brasil” (1936) E é o caso de Gilberto Freire com o seu “Casa Grande em Senzala” (1933)
No estado de Minas Gerais, ou mais exatamente na recém criada capital Belo Horizonte, já existia um grupo de intelectuais que haviam aderido ao movimento modernista iniciado em São Paulo.
Dele faziam parte Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos, para citarmos os dois mais famosos. Foi através do contato desse grupo mineiro com a comitiva paulista no ano de 1924 que surgiu a amizade entre Drummond e Mário de Andrade. E através dessa amizade e do incentivo do autor de Macunaíma, que se iniciou a trajetória daquele que foi um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.
Nesses poemas de “Alguma Poesia” vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em Macunaíma.
Há também a mesma oposição modernista à mera importação da arte estrangeira sem mediações com a realidade brasileira, o que é bastante explícito no poema “Europa, França e Bahia”:
Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cães bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.
(…)
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos,
minha boca procura a ‘Canção do Exílio’?
Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?
Eu tão esquecido de minha terra…
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!
Outro aspecto da obra diz respeito à própria concepção do artista sobre o que é a poesia e como ela deve ser feita.
De maneira geral, os poemas fazem alusão à afirmação do presente em detrimento do passado, visto como algo que “cheira mofo” e contém “teias de aranha”. Para se fazer poesia é necessário afirmar a realidade vista na sua imediaticidade, o que também significa ver e estar em contato direto com essa realidade, sentindo-a, criando a arte pela percepção imediata do poeta. Cite-se o poema “Lagoa”:
Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
não sei se êle é bravo.
O mar não me importa.
Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
e calma também.
Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa…
O fazer poesia, em Drummond, é uma experiência derivada dos sentimentos do poeta deflagrados pelo que ele vê, escuta, percebe ao seu redor. Sintomaticamente, um dos livros do escritor se chama “Sentimento do Mundo”. A poesia de fato nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma.
Poema
Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.