Trecho do livro: “Walther Moreira Salles, o banqueiro embaixador”
Às vésperas do fim do Estado Novo, em 1945, os Estados Unidos enviaram ao Brasil um diplomata experiente, Adolf Berle Jr., como novo embaixador. Formado em Direito, Berle lecionara Finanças em Harvard e era reconhecido como uma autoridade em Direito Corporativo. Participou da equipe de Roosevelt após a eleição de 1932, tornando-se um dos arquitetos do New Deal, o famoso programa de ação econômica e social lançado pela nova administração.
Conforme Stanley Hilton: “Além de seus amplos conhecimentos de assuntos públicos, Berle possuía mais dois atributos que influenciavam sua maneira de encarar as relações com o Brasil: uma consciência social arraigada e um zelo calvinista que o levava a tentar solucionar problemas e a se dedicar a obras de caridade. (…) Suas pesquisas sobre as empresas industriais modernas faziam com que criticasse a concentração da riqueza e o abuso do poder econômico, e seu ingresso na equipe de Roosevelt nos anos 30 nasceu de sua convicção de que o governo deveria assumir maior responsabilidade pelo bem-estar social. Em vista dessa orientação, Berle subseqüentemente se interessaria profundamente pela situação social e econômica do Brasil, a qual examinaria do reformador dedicado.”
Berle veio substituir Jefferson Caffery, “diplomata profissional, negociador hábil e realista” que esteve no Rio de 1937 a 1944. Caffery foi o responsável por articular as relações com os Estados Unidos, procurando o alinhamento brasileiro às posições norte-americanas.
Segundo Hilton: “Durante o período da neutralidade hemisférica em face do conflito europeu (1939-41), Vargas realizaria a façanha extraordinária de convencer os dois blocos antagônicos de que favorecia suas causas respectivas. Manobrava maquiavelicamente entre Washington e Berlim empregando a estratégica posição geográfica brasileira como arma de negociação e procurando tirar o máximo proveito de sua rivalidade.”
Após a declaração de guerra por parte do Brasil contra o Eixo, a colaboração entre o Brasil e os Estados Unidos “atingiria seu ponto alto no século” e elevou o Brasil “a primeira potência na América do Sul, no conceito político e estratégico dos Estados Unidos.”
“No setor externo, assim, a situação do Brasil ao aproximar-se o fim da guerra era de um prestígio internacional inédito na história do país. No setor interno, porém as rachaduras estavam bem visíveis”, escreveu Hilton.
Conforme Hilton: “As prioridades de Berle, contudo, eram diferentes das de seu predecessor. Quando Caffery chefiava a Embaixada, as principais preocupações da diplomacia norte-americana haviam sido forçosamente de caráter estratégico ou político-militar, resumindo-se no que dizia respeito à América Latina, na mobilização econômica e na defesa do hemisfério. (…) Ao chegar em 1945, porém, a guerra na Europa estava ganha e a defesa hemisférica não era assunto tão urgente. Embora questões de grande estratégia formassem o pano de fundo para sua atuação diplomática, Berle assim podia procurar outros campos para suas energias profissionais. Berle trouxe a seu novo posto o afã, típico do agente do New Deal, de realizar, modificar, reformar”.
Neste sentido, Berle reclamava da falta de preparo dos funcionários da embaixada no conhecimento e na análise da realidade brasileira. No cenário internacional, defendia ardentemente um tratamento especial ao Brasil (especialmente em relação à Argentina) como retribuição à sua posição durante a guerra. Berle entendia que o papel do embaixador “exigia que ele se mostrasse atento aos problemas brasileiros de desenvolvimento – e talvez até se intrometesse paternalmente neles”.
“A atitude de Berle na questão petrolífera talvez exemplifique melhor do que qualquer outra sua posição em relação ao papel apropriado do capital estrangeiro no Brasil. Reconhecia que o crescimento industrial do Brasil ao longo prazo dependia em parte de uma solução do problema do combustível e também achava perigosa a dependência brasileira de fontes externas de suprimento de petróleo. (…)”
“O embaixador não pensava que o Brasil possuía suficientes recursos e know-how para explorar seu petróleo sozinho, e sabia que a maneira mais rápida de desenvolver uma indústria petrolífera seria o governo abrir as portas do país às companhias estrangeiras. Entretanto não tinha ilusões sobre a indústria petrolífera norte-americana. Quando um auxiliar lhe avisou em fins de março que o regime Vargas estava pensando em modificar a legislação para permitir a exploração do petróleo por firmas estrangeiras, a reação imediata de Berle foi temer que o Brasil repetisse os exemplos do México, Venezuela e Bolívia, que haviam feito concessões quase monopolistas e, como tal, politicamente explosivas. Assim sendo, sua esperança era que Vargas encontrasse um modo ‘algo melhor e mais seguro’ de controlar a participação estrangeira. Uma possível solução, Berle sugeriu ao Departamento de Estado em meados do ano, seria os dois governos criarem uma comissão bilateral que vigiasse as atividades de companhias estrangeiras, a fim de assegurar que, nas palavras dele, ‘o povo [brasileiro] receba os benefícios dos recursos’.”
“Berle, assim, aprovava o projeto do Conselho Nacional do Petróleo de estabelecer refinarias, com capital nacional, para processar o petróleo cru importado como meio de ganhar experiência técnica. As firmas estrangeiras que controlavam o mercado brasileiro – Standard Oil, Atlantic Refining Company, Shell-Mex, e a Texas Oil Company – vigorosamente combatiam esse plano, pressionando o Departamento de Estado a intervir no caso. Na opinião do embaixador, essa opinião provinha do fato de a Gulf Oil ter oferecido fornecer óleo cru às projetadas refinarias, quebrando com isso o monopólio daquelas firmas. Ficou incrédulo, portanto, quando soube que um porta-voz da Standard Oil declarara altruisticamente a um auxiliar seu que a companhia estava preocupada com o custo que o Brasil teria de pagar para executar o projeto. ‘A Standard Oil do Brasil realizou um lucro líquido, após a depreciação, de 114% no ano passado…’, Berle comentou. ‘Sua preocupação de que o Brasil pague um preço alto demais – a brasileiros – para refinar petróleo, no Brasil, me parece simplesmente engraçada’.”
A postura de Berle foi muitas vezes interpretada como de excessiva intervenção em assuntos internos brasileiros. Este foi o caso de um controvertido discurso proferido por Berle, em 29 de setembro de 1945, no Sindicato dos Jornalistas. Nessa ocasião, Berle, defendeu claramente as eleições presidenciais marcadas para dezembro, criticou os conspiradores udenistas e, principalmente, advertiu os queremistas e os partidários do movimento Constituinte-com-Getúlio: “não é menos do que trágico quando essa tarefa essencial de elaborar uma constituição é permitida interromper ou impedir o autogoverno democrático, pela escolha popular do Poder Executivo”.
Esse discurso provou fortes reações, especialmente por parte do governo Vargas e de seus aliados, sendo condenado como uma afronta à soberania nacional. Segundo a análise de Stanley Hilton: “O relacionamento oficial entre os dois países pode não ter sido modificado, mas a intervenção de Berle obviamente teve severas repercussões na política interna brasileira. Em termos de seu objetivo, o discurso de Berle parece ter saído pela culatra. Berle acreditava não estar agindo contra Vargas; ao contrário, queria apenas reforçar a política dele em face das manobras de elementos que talvez não estivessem interessados em uma mudança de regime e dos que queriam derrubá-lo antes das eleições. Seu famoso discurso, entretanto, animou a oposição, que via nele uma declaração de simpatia, e, aos olhos dos conspiradores liberais e seus aliados militares, deve ter significado que sua ação, se fosse pintada como movimento imposto pela necessidade de impedir que Vargas sabotasse a redemocratização, seria compreendida e apoiada pelos Estados Unidos.”
Segundo Hilton, o posterior golpe que derrubou Vargas (apoiado na tese oposicionista que ele de alguma forma impediria as eleições e continuaria no cargo), foi desnecessário e defende que nada nas atitudes de Vargas neste período reforça esta tese, e que ele não contava com nenhuma forte força de sustentação que o permitisse.
Para Hilton, a defesa desta tese, a posteriori, por Berle se deve mais ao fato de justificar sua intervenção, do que a uma opinião formada na época. Da mesma forma “nada no passado de Berle nem em sua conduta como embaixador sustenta a acusação feita por Vargas um ano depois de que fora vítima de uma conspiração de forças econômicas internacionais indefinidas”.