Venezuela: Tarso e o monopólio da violência
Por Tarso Genro, em seu blog
O governador Tarso Genro nunca apreciou o bolivarianismo de Chávez e Maduro.
Direito dele e de quem mais assim pensar.
O problema é que do outro lado estão os gringos e a extrema-direita.
Talvez por isso, o mais recente artigo de Tarso se dedique a um debate político de fundo, acerca da aliança militar-policial-popular que, segundo Maduro, existiria na Venezuela.
Na opinião de Tarso, seria uma estranha aliança, confirmando que o confronto na Venezuela é entre dois blocos políticos indiferentes à democracia ancorada num Estado de Direito.
Tarso contrapõe a isto a defesa da democracia sem adjetivos de despistes – que garanta a rotatividade no poder, baseada em eleições periódicas com resultados verificáveis.
Segundo Tarso, esta democracia sem adjetivos de despistes seria a barreira mais eficaz para arquivar tanto o caudilhismo militar-policial, como a besta-fera do nazi-fascismo, em alta em todo o globo.
Isto pode, no futuro, vir a ser verdadeiro? Talvez.
Mas foi verdadeiro no passado, seja no passado mais recente, seja no passado mais passado? Não, não foi.
O que derrotou a besta-fera do nazi-fascismo não foi o estado de Direito, nem a democracia sem adjetivos de despistes.
Quem derrotou a fera, foram os ferros empunhados por gente disposta a matar nazi-fascistas.
Às vezes os ferros não precisaram cantar, pois a sua existência e a determinação de quem os empunhava contribuíam para evitar o confronto final.
Mas onde os ferros faltaram, onde a defesa da democracia dependeu apenas e tão somente do Direito, o golpismo foi vitorioso ou segue ameaçador (como é o caso, diga-se, de nosso sempre simpático país).
Por esses motivos, é preferível a aliança militar-policial-popular venezuelana do que a situação de vários outros países, onde grande parte das forças armadas e das polícias segue hegemonizada pelos inimigos da democracia, que ademais contam com muita gente desfardada, mas armada.
No fundo, Tarso sabe disto tudo.
O problema é que ele parece acreditar que, no caso venezuelano, a aliança militar-policial-popular tem farda demais e povo de menos.
Ou seja, se entendi direito, ele acha que Maduro ainda não provou que sua vitória tem pressupostos de legitimidade, através da apresentação das atas eleitorais.
Aceita esta premissa, pergunto: a verificação explícita da vontade popular seria capaz, sozinha, de impedir um golpe da extrema-direita apoiada pelos Estados Unidos?
A minha resposta, baseada no que sei acerca da história da Venezuela e da América Latina, é que não seria capaz de impedir. Uma revolução pacífica, mas desarmada, será sempre derrotada.
Entretanto, algumas das preocupações de Tarso fazem sentido, pois a história também mostra que armas não bastam para sustentar um regime, seja qual for.
Mas é preciso sempre lembrar que, sem elas, o melhor dos regimes será derrubado.
Portanto, ao menos neste momento histórico, nas atuais condições, a existência da tal aliança não é uma ameaça à democracia. Pelo contrário, é uma garantia da democracia.
Sem elas, a “verificação” da vontade popular venezuelana seria feita em Washington.
Aliás, o problema de fundo é que, ao contrário do que Tarso afirma, a Venezuela não soube se livrar das suas velhas oligarquias.
Elas continuam lá, tem prefeitos, governadores, parlamentares, meios de comunicação, dinheiro, apoio internacional e mais de 40% dos votos presidenciais.
Estas oligarquias não têm e nunca tiveram nada que ver com a democracia, no sentido popular da palavra. Seu Estado é de direita, não de direito.
Por isso mesmo, ou o bloco popular mantém o monopólio da violência, ou seu destino estará traçado.
Abaixo o texto citado
Foi Maduro quem disse “aliança militar policial-popular”
Governar com uma “aliança militar-policial-popular”- como insiste Maduro – não investe nenhum Governo de legitimidade para liderar um país
Não fui eu que disse, foi o Presidente Maduro que classificou esta estranha aliança, onde estado e sociedade, sociedade civil e sociedade política, não são separadas pelo perímetro da lei.
Ele falou para o mundo que a sua aliança venceria qualquer contenda contra a aliança da direita, do conservadorismo tradicional, da centro-direita, da extrema direita, parte dela organizada com bandos sabidamente golpistas – sempre atuantes na Venezuela – (venceria) porque seu Governo era resultado de uma aliança militar-policial-popular, de caráter nacional e anti-imperialista, para construir um regime socialista na Venezuela.
Socialismo a parte, se tivéssemos alguma dúvida sobre se o confronto na Venezuela era entre dois blocos políticos indiferentes à democracia ancorada num Estado de Direito, esta dúvida terminaria ali, com estas declarações de Maduro.
A declaração é, todavia, a base sobre a qual se pode evitar uma Guerra Civil na Venezuela, com a verificação independente dos seus resultados e uma auditagem nos seus mecanismos de proteção às fraudes.
Pelo histórico do conflito, as duas partes podem ter fraudado ou tentado fraudar os resultados depois de uma revolução popular, como se pode deduzir do que ocorreu na Revolução Sandinista da Nicarágua.
Faço esta premissa como ponto-de-partida de um raciocínio político de fundo, porque a defesa da democracia sem adjetivos de despistes – que garanta a rotatividade no poder, baseada em eleições periódicas com resultados verificáveis – é a barreira mais eficaz para arquivar tanto o caudilhismo militar-policial, como a besta-fera do nazi-fascismo, em alta em todo o globo.
Afirmo isso por dois motivos: primeiro, porque a depender da situação da economia e da política global, que transita pelo mercado da mídia tradicional, não se criarão condições suficientes de convivência democrática, que excluam a possibilidade da extrema direita chegar legalmente ao poder; e, segundo, porque as classes médias altas serão majoritariamente uniformes, na sua adesão ao fascismo, se ele se revelar novamente como possibilidade real de poder. Já ocorreu no Brasil, na Argentina e em outros países do globo.
Uma aliança militar-policial-popular (tomado aqui como “popular” a parte do povo armado pelo Governo Bolsonaro, somado aos setores pobres atingidos pelo dinheiro desviado das suas finalidades orçamentárias para comprar votos) – esta aliança – poderia ter sido instalada no Brasil.
Bastaria o polo golpista ter no seu Comando quadros de prestígio de dentro das próprias corporações de Estado que o Golpe, com a vitória desta turba nas eleições do Brasil, ou mesmo com a desconfiança de que a eleição seria roubada por Lula, seria aberta a via de um banho de sangue e se instalaria aqui uma ditadura de fato, por dentro de um Estado de Direito vulnerável.
A nota da Executiva do PT foi omissa ao não ressaltar claramente a necessidade de que se firmassem pressupostos de legitimidade de um novo Governo na Venezuela, através da apresentação das atas eleitorais, que Maduro não fez e a oposição também não fez.
A corajosa decisão do Governo Lula, juntamente com os Governos do México e da Colômbia foi, portanto, certeira, quando substituiu a valentia “militar-policial” de quem está no poder e detém mecanismos de controle da administração do Estado, pela verificação explícita da vontade popular.
A Guerra Fria instaurou em várias gerações uma moralidade histórica bastante convincente, baseada em pressupostos éticos e em observações empíricas, comprováveis a “olho nu”: a URSS e seus “satélites” representavam a resistência ao nazismo, comprovada na 2ª. Guerra Mundial, quando o imperialismo mostrava – pensava-se à época – o clímax da sua desumanidade ao atacar o Vietnam, que buscava – com sua resistência heroica construir – uma nação livre e soberana, através de uma justa guerra de libertação nacional.
Essa constatação se torna importante para analisar os fenômenos políticos desta etapa da globalização, porque é impossível usar as mesmas categorias analíticas da época da “guerra fria”, para compreender o presente, onde os supostos “bem” e o “mal” estão fundidos – no ciclo atual – nos interesses das grandes nações que são dominantes sobre o segundo e o terceiro mundo.
Por acaso a China, por exemplo, não é a maior nação detentora de títulos públicos do Império Americano?
Não é verdade, por acaso, que tanto a China como os EEUU têm relações econômicas e de “bem-estar político”, com governos ditatoriais sórdidos, de todo o mundo, para protegerem seus interesses históricos imediatos?
As relações de apoio recíproco entre os “grandes” do capitalismo globalizado são conformadas em torno dos temas mais imediatos do processo de dominação imperial-colonial, não mais pelas grandes narrativas civilizatórias em nome da democracia, do socialismo ou dos projetos reverenciais do paternalismo de Sua Majestade Inglesa, com a iluminação fictícia da igualdade e da democracia.
Numa passagem do texto “Introdução à Leitura de Winckelmann” escrito pelo Professor Gerd Bornheim (Reflexões sobre a arte antiga, Ed. Movimento, 1975, pg.12), está relatado o célebre encontro de Goethe com Napoleão em Iena.
É o encontro de dois símbolos de uma época na qual o Imperador, que na sua juventude acalentava a ideia de se tornar um Cézar europeu, “como que pede a Goethe” a sua glorificação, a ser feita através de um “drama” histórico, que seria escrito pelo genial poeta e filósofo alemão.
Goethe, o grego homérico, reluta em comprometer-se com Napoleão, o romano épico: “como glorificar quem desfigura o Grego”, perguntou-se o filósofo, olhando a poesia de fora dos encantos da subjetividade romântica.
Trump, Putin e Zelensky, são as faces mais agudas que transitam no mundo, com diferentes moedas de valorização da revogação do humanismo moderno e com as diferentes formas de apropriação – pelas filiais do capitalismo financeiro – em diferentes continentes do mundo.
Seus esteios são as guerras, o que não é épico nem homérico, mas trágico.
Uma outra memória que me assalta é uma passagem dos “Dez Dias que abalaram o mundo” (John Reed) que logo após a tomada do poder pelos bolcheviques fez uma reportagem histórica sobre a grandeza,