Lula errou ao ir a Moscou?
Lula errou ao ir a Moscou?
Luís Felipe Miguel acha que sim.
Quem quiser ler a opinião dele, está neste link e também ao final deste texto,
LFM chama de “falsos ingênuos” os que dizem ser justo comemorar a vitória da extinta União Soviética na Segunda Guerra Mundial.
Ingenuidades e falsidades à parte, é “justo” ou não? Devemos ou não comemorar?
Da minha parte acho que devemos lembrar sempre do papel da URSS na derrota do nazifascismo.
LFM diz não saber se “realmente existe” um “apagamento da participação fundamental dos soviéticos na luta contra o nazismo”.
Mas logo depois reconhece que tal “apagamento” existe nas “produções da indústria cultural ocidental”, mas questiona que isso exista nos “livros de história”.
Como as massas consomem mais “produções da indústria cultural” do que “livros de história”, LFM responde ele mesmo sua própria questão.
LFM considera que “os 80 anos do fim da guerra são mero pretexto para os festejos de hoje, cujo ponto alto, convém não esquecer, é uma parada militar”.
Não sou entusiasta de militarices, mas se há uma “parada” justa é essa. Afinal, sem o Exército Vermelho, o “homem do castelo alto” poderia não ser ficção.
LFM diz que Putin quer “romper o isolamento em que se encontra desde que invadiu a Ucrânia, há quase três anos e meio”.
Que “isolamento”? “Isolamento” em relação a quem? Quantos e quais países do mundo adotaram sanções contra a Rússia?
LFM diz que indo a Moscou, “Lula objetivamente endossa a agressão contra os ucranianos”.
“Objetivamente” isto é a opinião de LFM. A minha é que Lula está levando à prática o que sempre disse: acabar com a guerra exige negociação, inclusive com Putin.
Quem diz querer acabar com a guerra, mas não quer conversar com Putin é “objetivamente” um “falso”, embora não “ingênuo”.
Boa parte do texto de LFM é uma digressão sobre o “putinismo” & quetais. Não concordo com o conteúdo desta digressão, mas o mais relevante do ponto de vista político é que ela não ajuda a compreender as posições de Lula.
Vale dizer que Breno Altman, Pepe Escobar e outros não pensam a mesma coisa e Lula não pensa o mesmo que eles. Por exemplo: diferente dos citados, Lula condenou a agressão à Ucrânia.
Segundo LFM, “há uma boa parcela de responsabilidade dos EUA na escalada do conflito”.
Na verdade, é bem mais que isso: os EUA e a OTAN têm suas digitais no conjunto da obra. Também por isso, criticar Putin e relativizar o papel dos EUA é de um “maniqueísmo” atroz. E, como disse o próprio LFM, o maniqueísmo “quase sempre explica muito mal as realidades com as quais nos deparamos”.
E a realidade é que, na atual situação mundial, nós do Brasil somos BRICS. Isso não significa se “perfilar a Putin”, coisa que Lula não fez. Mas certamente significa que não devemos tratar a Federação Russa como inimiga.
Portanto, minha opinião é oposta a de LFM: Lula não cometeu um erro político indo a Moscou.
Pelo contrário, sua presença no Dia da Vitória contribui positivamente para com as relações internacionais do Brasil. E é perfeitamente coerente com a busca da paz, que como já dissemos pressupõe negociar com Putin.
Por último: LFM diz que Lula dá “combustível para a direita”.
Penso diferente: neste caso, o que dá “combustível” para nossos inimigos é aceitar suas premissas, como faz em várias questões este texto de LFM.
Segue abaixo o texto criticado.
Post de Luís Felipe Miguel em perfil de rede social
Lula errou ao ir a Moscou.
Os falsos ingênuos dirão que é justo comemorar a vitória da extinta União Soviética na Segunda Guerra Mundial. Recentemente, aliás, os porta-vozes do putinismo no Brasil, como o jornalista Breno Altman, iniciaram uma campanha contra o suposto apagamento da participação fundamental dos soviéticos na luta contra o nazismo.
Não sei se realmente existe tal apagamento – nas produções da indústria cultural ocidental, sim, como sempre, mas também nos livros de história? Seria necessária muita borracha para isso.
Seja como for, os 80 anos do fim da guerra são mero pretexto para os festejos de hoje, cujo ponto alto, convém não esquecer, é uma parada militar. O que Putin quer é romper o isolamento em que se encontra desde que invadiu a Ucrânia, há quase três anos e meio.
Ao ir a seu encontro, Lula objetivamente endossa a agressão contra os ucranianos. Não é preciso ser um expert em política internacional para perceber isso.
Não é um encontro normal entre chefes de Estado, em que fatalmente se torna necessário trocar afabilidades com todo o tipo de patife. É uma parada militar em um país que a comunidade internacional condena por ter agredido um vizinho.
Quando a guerra entra na discussão, os falsos ingênuos subitamente aderem a teorias sofisticadas. Falam sobre a mistura étnica do Donbass e de outras regiões da Ucrânia oriental, como se conhecessem algo daquilo; citam plebiscitos organizados pela Rússia, como se não fossem fajutos; colocam na conversa a OTAN e a política de cerco adotada pelos Estados Unidos pré-Trump.
Sim, a situação é complexa e há uma boa parcela de responsabilidade dos EUA na escalada do conflito, mas nada disso justifica o apoio a uma guerra de expansão territorial.
Quando a invasão começou e parecia que a Rússia conseguiria um sucesso rápido, motivando aqueles artigos altissonantes do “especialista em geopolítica” Pepe Escobar que são hoje leitura obrigatória nas disciplinas de Teoria e Prática do Vexame em universidades de todo o mundo, não faltaram pessoas à esquerda comemorando alegremente, indiferentes ao sofrimento da população civil.
Quando a coisa encrespou e a resistência ucraniana se mostrou mais forte do que o esperado, teve até quem sugerisse que a Rússia usasse bombas nucleares, para “salvar o mundo de uma terceira guerra mundial”. (Aparentemente, o tuíte depois foi apagado.)
Agora, não se fala nada sobre o fiasco da máquina de guerra russa – que ainda é poderosa o suficiente para evitar uma derrota, mas não consegue alcançar uma vitória.
Os putinófilos de esquerda são, via de regra, neostalinistas. Há uma sobreposição forte entre neostalinismo e simpatia pelo governo Putin.
Acho que tem três fatores que explicam o fenômeno. O primeiro, obviamente, é o maniqueísmo. Uma vez que o imperialismo estadunidense é mau, quem se opõe a ele precisa necessariamente ser bom. Se a OTAN era contra, eu tinha que ser a favor.
E se Zelensky é um oportunista vulgar com simpatias pela extrema-direita, devo aplaudir qualquer um que esteja contra ele.
Deste jeito, a agressão de uma potência com pretensões imperiais deve ser apoiada porque ocorre em oposição a outra potência imperial. Um governante com predisposições fascistas deve ser desculpado porque está em confronto com outro governante fascistoide.
Não sei se vem de fábrica na humanidade, não sei se é produto das narrativas mitológicas com que somos alimentados desde a mais tenra infância, mas o fato é que o maniqueísmo surge quase que espontaneamente. No entanto, ele quase sempre explica muito mal as realidades com as quais nos deparamos.
O maniqueísmo nos dá um lado para o qual torcer, o que parece satisfazer algumas predisposições psicológicas inatas. E, sobretudo, permite que a gente evite confrontar o fato de que, no mundo em que vivemos, muitas vezes a disputa que ocorre não é do mal contra o bem, mas de um mal contra outro.
Não é preciso gostar dos Estados Unidos ou de Zelensky para rechaçar Putin. Isto é tão óbvio que nem precisava ser dito.
Como escreveu Lênin, certa vez: “Imaginem um proprietário de escravos que possuía 100 escravos guerreando contra um proprietário de escravos que possuía 200 escravos, por uma distribuição mais ‘justa’ de escravos. Claramente, a aplicação do termo guerra ‘defensiva’ ou guerra ‘pela defesa da pátria’ em tal caso seria historicamente falsa e, na prática, seria puro engano das pessoas comuns, dos filisteus, dos ignorantes, pelos astutos donos de escravos. Precisamente assim a burguesia imperialista atual engana os povos por meio da ‘ideologia nacional’ e do termo ‘defesa da pátria’ na presente guerra entre senhores de escravos para fortalecer e reforçar a escravidão”.
E a guerra que Putin iniciou, convém nunca esquecer, não é contra Zelensky ou contra a OTAN. De certa forma, eles foram seus primeiros beneficiários. A OTAN ganhou legitimidade na Europa, como proteção contra uma ameaça russa que se mostrava concreta. Recebeu a adesão de países antes refratários a ela, como Finlândia e Suécia. Já Zelensky passou de charlatão a herói da pátria, prolongou seu mandato, ampliou seu poderes.
A guerra é contra o povo ucraniano. É ele que sofre. Mas os putinófilos de esquerda esquecem disso, seja porque se preocupar com os custos humanos é “coisa de pequeno-burguês”, seja porque a adesão ao maniqueísmo os leva a acreditar que todo ucraniano é neonazista.
Algo que guarda semelhança, vejam só, com o discurso sionista que estabelece que qualquer bebê palestino é um “terrorista do Hamas”.
O curioso é que o maniqueísmo deu um tilt com a aproximação entre Washington e Moscou, depois da vitória de Trump (que uma parte da imprensa estadunidense especula que seria um agente do serviço secreto russo). Mas a adoração por Putin já se tornara tão grande que eles preferem absolver o magnata alaranjado, para não romper com seu novo ídolo.
O segundo fator é que Putin tem, em comum com “Koba” (o simpático apelido de Stálin), um desprezo completo por direitos, liberdades, todas estas frescuras liberais que um “verdadeiro revolucionário” deve ignorar.
A lógica é capenga mesmo em seus próprios termos. Ainda que um “verdadeiro revolucionário” devesse desprezar direitos e liberdades individuais, nada garante que alguém vira “verdadeiro revolucionário” só por desprezá-los.
É um pessoal que se diz socialista, mas curte mesmo é um autoritarismo.
Por fim, fortemente vinculado ao anterior, o último fator: o machismo. Putin cultiva a imagem de líder destemido, que bate a mão na mesa, paga pra ver, enfrenta os riscos. A mesma imagem que funda a mítica stalinista.
São “machos”, em suma. E fazer a guerra é a demonstração máxima de sua macheza.
Tenho visto textos de glorificação de Putin, que tentam conectá-lo com o período soviético, que são de enrubescer de vergonha alheia. Sim, ele foi da KGB – que não foi só um escritório de espionagem, mas também uma polícia política e uma usina de torturas, um símbolo do que a União Soviética tinha de pior.
Mas sua ideologia, se é que tem uma, é um nacionalismo reacionário, com óbvias pitadas fascistas. Na prática, não se conhece uma medida sua em benefício da classe trabalhadora russa. No espectro político, está na extrema-direita, do ladinho de Trump ou de Bolsonaro.
Ao se perfilar a Putin, Lula não comete apenas um erro político – algo que prejudica as relações internacionais do Brasil e, internamente, dá combustível para a direita. É pior. Ele renega o compromisso com a paz, que deveria guiar nossa política externa.