‘Nem deveria ter entrado’: Valter Pomar defende rompimento do PT com Riedel

Membro da direção nacional do PT, candidato à presidência do partido defendeu guinada à esquerda e saída do governo sul-mato-grossense

Norberto Liberator*, na Badaró

Na história do Brasil, nenhuma agremiação de esquerda foi tão bem-sucedida quanto o Partido dos Trabalhadores. De um papel decisivo na Constituinte de 1988 a prefeituras, governos de estados e à eleição do primeiro operário a chegar à presidência da República, a legenda se consolidou com a base sólida em uma militância “pé no barro”. Sindicatos, movimentos de luta pela terra, pastorais católicas, intelectuais e artistas formaram uma força ampla e diversa que não tinha medo de falar em socialismo.

Hoje, o cenário é diferente. Ao longo de três mandatos e meio, até um golpe de Estado, o PT se desgastou. As concessões à direita se tornaram cada vez menos pontuais e mais profundas desde a “Carta aos Brasileiros”, lançada antes da vitória eleitoral em 2002, ano em que o partido apostou num empresário de centro-direita como vice.

Abandonando cada vez mais o discurso radical e se tornando parte do “sistema”, o PT perdeu parte do encantamento que possuía sobre a juventude e as camadas mais populares. Há quem aponte que o partido começou a caminhar para a política de conciliações desenfreadas não em 2002, mas em 1995, quando José Dirceu foi eleito seu presidente nacional. Naquele ano, Dirceu era considerado o candidato do “centro”, enquanto Hamilton Pereira representava a ala mais à esquerda.

Atualmente, o PT passa novamente por eleições internas. O chamado PED (Processo de Eleição Direta) ocorre no dia 6 de julho. Novamente, o partido tem uma disputa entre setores que querem levá-lo mais ao centro e os que defendem mais radicalidade. Entre o segundo grupo, um dos candidatos esteve em Campo Grande em uma rara noite de frio na capital sul-mato-grossense.

De boina, sobretudo e uma camiseta com estampa em apoio à causa palestina, Valter Pomar cedeu entrevista à Badaró em uma padaria, onde conversou sobre os rumos do PT e da política nacional.

Badaró: Em Mato Grosso do Sul, o PT integra a base do governo Eduardo Riedel. Uma figura do agronegócio, que recentemente colocou sua polícia para agredir companheiros sem-terra e que defende a anistia dos golpistas do oito de janeiro. Como você vê essa aliança e a possibilidade de um rompimento com esse governo?

Valter Pomar: Que o PT não deveria ter entrado nesse governo e já deveria ter saído. Não é um problema do Mato Grosso do Sul. Em vários estados brasileiros aconteceu algo parecido. Em nome de derrotar a extrema direita, o PT nas eleições apoiou um candidato da direita.

Muitas vezes esse candidato da direita também era meio extremo. Mas o PT não apenas apoiou esses candidatos, como deu um passo além. Começou a participar do governo. Esse passo além é mortal, na minha opinião.

Porque uma coisa é você sugerir à população que num segundo turno, onde o PT não está, vote contra o candidato da extrema direita. Outra coisa é você recomendar à população que vote num candidato da direita para derrotar o candidato da extrema direita. E uma terceira coisa diferente é você transformar isso em participação no governo, porque aí você se compromete com a execução de um programa que não tem nada a ver com o nosso. Então, isso aconteceu em vários estados do país, de diferentes formas.

O Rio Grande do Sul, por exemplo, é um estado onde nós, no segundo turno, sem que houvesse uma decisão formal do partido, indicamos o apoio ao Leite. Não chegamos a fazer parte do governo, mas a simples indicação de apoio já rendeu problemas para o partido, porque não se faz uma oposição correta. Aqui no Mato Grosso do Sul se deu um passo além, ou seja, o PT começou a participar do governo. É um erro.

O correto é que o PT saia imediatamente do governo, até porque, como você disse, este governador adotou uma posição, uma questão-chave que o reassociou à extrema direita. Hoje, quem defende a anistia para os golpistas não pode ser considerado como um aliado democrático, sob nenhum aspecto.

Duas mulheres da política sul-mato-grossense têm chances de serem candidatas à vice-presidência no ano que vem. Tereza Cristina pela extrema direita, seja com Ronaldo Caiado, Tarcísio ou qualquer nome inventado, e Simone Tebet, como possível vice do Lula. Embora seja um quadro considerado mais ao centro, a Simone também é ligada ao agronegócio. O seu marido, Eduardo Rocha, é secretário da Casa Civil, justamente do governo Riedel. E como você vê essa influência das elites agrárias do Mato Grosso do Sul, que perpassam todo o espectro político, sobre a política nacional e particularmente sobre o governo federal?

Veja, a influência do agronegócio é uma marca da história do Brasil. Desde que o Brasil é Brasil, o latifúndio cumpre um papel muito importante na política brasileira e é o setor mais reacionário da classe dominante. Nesse período mais recente, houve uma expansão acentuada do agronegócio na região Centro-Oeste e na região Norte do país. E desses dois territórios vem uma base muito importante da oposição de extrema direita e de direita contra nós.

Claro que existem diferenças dentro do agronegócio, diferenças políticas, mas elas não são estruturais. Essa é a primeira questão. A segunda questão é que tudo caminha, ano que vem, para uma aliança entre as duas alas da direita. No primeiro e/ou no segundo turno.

Portanto, a gente corre um risco muito grande de que forças que nos apoiaram em 2022 passem a disputar contra nós no primeiro e no segundo turno na disputa presidencial. Essa influência do agronegócio é totalmente deletéria. O Brasil não pode continuar sendo uma subpotência primária exportadora. O agronegócio precisa ser derrotado e as suas expressões políticas também.

É interessante que você destaque o fato de que são duas mulheres, ou seja, a direita brasileira está fazendo uma renovação e está dialogando com as tendências renovadoras que existem na sociedade. Muitos desses quadros da extrema direita e da direita no Congresso Nacional são jovens, jovens filhos da elite, jovens da oligarquia. E aqui você deu o exemplo de duas mulheres que estão expressando os interesses do agronegócio. Isso impõe ao PT um duplo desafio, que é enfrentar esse setor social e suas expressões políticas, mas também oferecer candidaturas que dialoguem com essa operação que eles estão fazendo.

Eu tenho dito, por exemplo, que o PT deve lançar uma candidata a vice-presidenta da República nas próximas eleições presidenciais. Pensando no que vai vir depois, ou seja, se tudo correr bem e a gente tiver um novo mandato do Lula, em 2030 nós precisamos projetar candidaturas vinculadas ao PT. Por isso é muito importante que a vice do Lula seja petista e seria muito importante que nós lançássemos mais uma vez uma mulher. Nós já fizemos isso com êxito com a companheira Dilma Rousseff, e essa seria uma maneira de neutralizar essa operação que você citou aqui com duas mulheres expressando os interesses da camada mais reacionária da política brasileira.

Você tem ideia desse nome?

Não falo nem que me obrigue, mas todo mundo tem ideia [risos].

Os movimentos de luta pela terra têm se queixado de que a reforma agrária avançou pouco até o momento durante o governo Lula III. Você atribui essa falta de políticas de distribuição de terra à influência do agronegócio sobre os setores do governo federal?

Veja, é uma gentileza falar que avançou pouco. Na verdade, não avançou. Não houve reforma agrária. Nem no primeiro, nem no segundo, nem está havendo agora. Porque reforma agrária é a expropriação do latifúndio sem pagamento. E o que tem ocorrido é uma política de compra de terras, na imensa maioria dos casos. Isso não é reforma agrária. Isso é política de distribuição de terra.

É útil, é importante, mas a gente precisa fazer reforma agrária mesmo. No atual mandato do presidente Lula, entretanto, a situação é particularmente ruim. O Movimento Sem Terra tem reclamado, com razão, que mesmo aquilo que não é reforma agrária, no sentido histórico da palavra, mas é uma política agrária, em benefício dos assentados, em benefício das famílias produtoras, isso não vem sendo feito de maneira adequada.

Não vem sendo feito de maneira correta. Em parte isso é influência do agronegócio, evidentemente. É um efeito colateral da aliança que foi feita em 2022, da tal frente ampla, mas em parte tem a ver com o abandono que setores do PT e da esquerda fizeram das reformas estruturais.

Veja, nós disputamos a eleição de 2022 com um programa que falava: “reconstrução e transformação”. E quando o governo começou, o slogan do governo passou a ser União e Reconstrução. A transformação sumiu. Isso não se deve apenas à pressão do agronegócio, se deve à desistência de alguns setores da esquerda em relação às reformas estruturais. A mais importante, a mais clássica delas é a reforma agrária e ela é indispensável, inclusive para a industrialização do Brasil.

Quando se iniciou a atual guerra entre Irã e Israel, uma comitiva de representantes do governo estadual do Mato Grosso do Sul estava em Tel Aviv, ou seja, o governo sul-mato-grossense também tem sua parte no financiamento do genocídio da população palestina. Você vê isso também como um fator para um rompimento entre o PT e o governo?

Com certeza, mas só um ajuste. Na verdade, o que existe é uma guerra entre Israel e o Irã, não uma guerra entre Irã e Israel. Israel atacou o Irã, Estados Unidos atacaram o Irã. O Irã está exercendo o seu legítimo direito de defesa, não foi ele que deu o primeiro tiro, não foi ele que atacou. E, ao lado disso, é bom dizer que não existe uma guerra entre Israel e os palestinos.

Existe um genocídio, porque não tem dois exércitos se defrontando. Tem uma população civil que está sendo massacrada pelas armas, pela fome, pela falta de água e pela doença. Em relação à visita que vários políticos brasileiros, inclusive esses que você citou, fizeram ao Estado de Israel recentemente, ela é reveladora de algo que a gente vem denunciando há algum tempo. Há uma simbiose, uma aproximação, um pacto entre o sionismo corrente política ideológica que domina o Estado de Israel e a direita aqui no nosso país.

É por isso que na campanha eleitoral de 2022 havia bandeiras dos Estados Unidos e de Israel nos comícios e nas atividades da direita e é por isso que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, foi à manifestação religiosa ocorrida em São Paulo há poucos dias abraçado numa bandeira do Estado terrorista de Israel.

Essas relações não são só políticas ideológicas. Vários governos estaduais, vários governos municipais, várias empresas privadas, várias universidades fazem convênios, contratos, compras. E com isso ajudam a financiar o Estado terrorista de Israel.

A Polícia Militar de São Paulo, por exemplo, que eu conheço, ela usa e abusa de tecnologia e de armamentos comprados em Israel. Isso é a prova de que é necessário romper as relações, não só diplomáticas entre Brasil e Israel, mas também os demais convênios e acordos. E, sim, isso é, como eu falei no início, um motivo plus, um motivo a mais para que o nosso partido saia ontem desse governo. Não tem sentido nenhum a gente permanecer nele.

A última, para fechar: Uma decisão atual da bancada do PT na Câmara tem gerado muita polêmica. De 68 deputados federais, 63 petistas votaram para derrubar vetos do presidente no Marco Regulatório de Energia Offshore, incluindo o ponto mais polêmico, que é o impacto nas contas de luz. Os votos teriam sido por orientação da bancada. Como você avalia esse episódio? Acredita que é mais um sintoma de que o partido precisa de mudanças?

Na verdade, esse caso é grotesco. Foi aprovado no Congresso Nacional esse marco. Ele continha uma série de jabutis, ou seja, se introduziu na legislação regras que beneficiavam empresas privadas, beneficiavam com dinheiro que sairia do pagamento das contas de energia elétrica do povo brasileiro. O presidente Lula corretamente vetou. Vetou porque era errado, vetou porque prejudicava o povo.

E, em seguida, a direita se preparou para derrubar o veto. Frente a isso, havia duas táticas possíveis. A primeira era denunciar ao povo brasileiro que a direita estava fazendo isso, um lobby, cujo custo ia ser pago pelo povo nas contas de energia elétrica, e a outra alternativa era negociar uma mediação. E foi isso que o governo resolveu fazer.

O governo começou a negociar com a maioria conservadora o seguinte: o PT seria orientado a votar a favor do veto, e, em contrapartida, os conservadores se comprometeriam a, quando viesse uma nova medida provisória, não obstaculizar. Só que essa nova medida provisória, se e quando viesse, não seria a ideal.

Já incorporaria parte do jabuti. Ou seja, a gente primeiro se comprometeria a votar pela derrubada do veto, portanto assumiríamos parte da responsabilidade e depois ainda mandaríamos uma medida provisória que seria, conteria diretrizes que não são as nossas.

Resultado: foi essa a orientação do governo e do líder do governo; não da bancada, a do governo. O Randolfe Rodrigues, aquele senador que saiu do PT dizendo que o PT era o “ó do Borogodó” e depois voltou pela direita. E hoje está novamente no PT. O senador Randolfe Rodrigues, como líder do governo, deu alguns passos além. Sem autorização de ninguém, negociou mais coisas ainda do que aquelas que o governo já estava disposto a negociar. Não comunicou isso ao governo, não comunicou isso à bancada, orientou o voto.

E não votou. Detalhe: ele mesmo, ele mesmo não votou. Não é maravilhoso isso? Então é uma história grotesca e uma prova de que o governo está afundado numa tática de conciliação.

Porque o certo, já que eles têm maioria para derrubar o veto, o certo teria sido denunciar, ir fazer mobilização e propor uma medida provisória com as nossas posições para aprová-la no Congresso. O que foi feito não faz o menor sentido, porque se era pra fazer acordo, por que então Lula vetou? Se o problema era de correlação de forças, por que o Lula vetou? Entende? O certo era ter enfrentado novamente e a decisão de conciliar, ela é bem típica.

Gente, conciliação, você sabe como começa e não sabe como termina. Essa daí terminou desse jeito. Os parlamentares do PT foram surpreendidos, surpreendidos. Estão muito, muito, muito agastados com o que aconteceu.

Não foram informados do que o Randolfe havia negociado. E não conseguiram, no momento, inclusive, nem mesmo falar com o Randolfe. E ficaram chocados quando descobriram que ele não votou. Agora, a origem do problema não tem a ver com a personalidade e as atitudes de um indivíduo. A origem do problema está na orientação equivocada que veio do governo.

Condução e roteiro: Norberto Liberator

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Last Update: 26/06/2025