Uma nova Gaza, mas dentro da Inglaterra

por Fábio de Oliveira Ribeiro

As notícias que chegam da Inglaterra são extremamente preocupantes.

“The home secretary will move to proscribe the Palestine Action group in the coming weeks, effectively branding them as a terrorist organisation, the BBC understands.

Yvette Cooper is preparing a written statement to put before Parliament on Monday – which if passed will make becoming a member of the group illegal.

The decision comes as a security review begins at military bases across the UK, after pro-Palestinian activists broke into RAF Brize Norton in Oxfordshire and sprayed two military planes with red paint.

A spokesperson for Palestine Action said: ‘When our government fails to uphold their moral and legal obligations, it is the responsibility of ordinary citizens to take direct action.’”

See Palestine Action to be banned after RAF base break in

Tradução: “O Ministro do Interior tomará medidas para proscrever o grupo Ação Palestina nas próximas semanas, classificando-o efetivamente como uma organização terrorista, segundo apurou a BBC.

Yvette Cooper está preparando uma declaração por escrito para apresentar ao Parlamento na segunda-feira – que, se aprovada, tornará ilegal a adesão ao grupo.

A decisão ocorre no momento em que se inicia uma revisão de segurança em bases militares em todo o Reino Unido, depois que ativistas pró-palestinos invadiram a Base Aérea Real Britânica de Brize Norton, em Oxfordshire, e picharam dois aviões militares com tinta vermelha.

Um porta-voz da Ação Palestina disse: “Quando nosso governo falha em cumprir suas obrigações morais e legais, é responsabilidade dos cidadãos comuns tomar medidas diretas.”

Muitas coisas podem ser ditas sobre o avanço do autoritarismo em diversos países, mas o caso Inglês é paradigmático por vários motivos. Para entender isso é preciso recuar um pouco para ver o panorama jurídico de maneira a enquadrar corretamente o problema.

Todas as constituições garantem aos cidadãos o direito à liberdade de consciência, de expressão e de manifestação. Esses são direitos construídos ao longo do tempo cuja origem moderna remota é a Declaração dos Direitos do Cidadão proclamado pela Revolução Francesa. Eles foram consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, documento subscrito integralmente pela Inglaterra. O sistema inglês prescinde de constituição escrita, mas aquele país tem uma lei que os garante: o  Human Rights Act 1998.

O direito à liberdade de consciência, de expressão e de manifestação é atribuído aos cidadãos em geral e a cada cidadão em particular de maneira genérica. Isso significa que não compete ao Estado dizer em que cada cidadão deve acreditar, como ele deve se expressar ou que tipo de manifestação ele pode organizar, quando onde e porque motivo a favor ou contra de qual causa.

É evidente que abusos cometidos que acarretem danos a terceiros podem acarretar punições. Mas essas punições devem ser sempre impostas caso a caso levando em conta o comportamento específico de cada cidadão. Nenhum grupo de pressão organizado pela população, por mais que o conteúdo dele desagrade os governantes no poder pode ser considerado automaticamente ilegítimo. Especialmente quando a legitimidade de uma causa é amplamente reconhecida por organismos internacionais multilaterais dos quais o país faz partes.

Esse é o caso da causa Palestina, que tem sido referendada como legítima tanto por decisões da Corte Internacional de Justiça em favor dos palestinos quanto por decisões do Tribunal Penal Internacional contra autoridades israelenses acusadas de cometer genocídio em Gaza. Quem defende a causa dos palestinos não pode ser designado automaticamente como criminoso, porque a causa em si não foi considerada criminosa. Ademais, ninguém poderia cogitar criminalizar o apoio à Israel ou às autoridades israelenses na Inglaterra porque apesar das condutas deles serem julgadas ilegítimas aos olhos da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional isso não fulmina automaticamente os direitos genéricos atribuídos aos cidadãos ingleses na Inglaterra.

O aspecto mais terrível do que está acontecendo na Inglaterra é a evidente parcialidade das autoridades. Elas querem silenciar e criminalizar uma parcela da população (apoiadores da causa palestina), enquanto a outra parcela (apoiadores da causa israelense) não sofrerão qualquer tipo de restrição no seu direito à liberdade de consciência, expressão e manifestação.

A Inglaterra está em guerra contra os palestinos ou com a Palestina? Formalmente não, porque apesar dos industriais de armamentos ingleses lucrarem com o conflito no Oriente Médio fornecendo armas para Israel a Inglaterra não foi atacada pelos inimigos dos israelenses. Aliás, a própria Palestina não existe como Estado razão pela qual nem a Inglaterra poderia declarar guerra àquele grupo de pessoas ou receber uma declaração de guerra dele.

Outro aspecto terrível da situação na Inglaterra é o fundamento que está sendo dado para jogar na ilegalidade um grupo de cidadãos que apoia uma causa legítima. Se alguém em algum momento cometeu uma infração civil ou penal, ele deve responder pelo crime na forma da Lei. A individualização da responsabilidade civil e penal é um fato essencial para o funcionamento de qualquer sociedade democrática.

Ao deslocar a responsabilização por ilícitos civis e penais da esfera individual para a coletiva, restringindo o direito à liberdade de consciência, de expressão e de manifestação de um grupo de pessoas considerado politicamente indesejável, as autoridades inglesas retroagem à Idade Média. Num país democrático que se obrigou a respeitar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, não pode o Estado fazer discriminações de ordem política, racial, sexual, ideológica, religiosa, etc, negando a uma parcela da população direitos que são outorgados às demais. Isso era comum na época das caças às bruxas e da repressão de heresias que levavam os “inimigos do Estado” ou “inimigos da fé oficial do Estado” a serem perseguidas, presas, torturadas e decapitadas por mera suspeita sem que qualquer conduta realmente criminosa tivesse sido praticada pelo condenado.

O perigo da Inglaterra afundar no autoritarismo e na mediocridade existe. Se a Lei comentada for aprovada e colocada em prática, em pouco tempo os ingleses viverão num Estado dual: uma parcela da população terá cidadania e direitos; a outra será obrigada a se calar e a não se manifestar sob pena de ser coletivamente perseguida pela Polícia em razão de defender uma causa considerada automaticamente criminosa. Pior, ao tratar a defesa de uma causa como “terrorismo” as autoridades inglesas deixam bem claro que extrema brutalidade policial poderá ser utilizada na repressão aos inimigos do Estado pró-sionista.

Eu digo pró-sionista não porque o Estado vai tolerar propaganda em favor de Israel e sim porque a Polícia poderá utilizar na Inglaterra os mesmos métodos que tem sido utilizados contra os palestinos em Israel, Gaza e na Cisjordânia. Criminalização em bloco de um grupo, supressão de identidade compartilhada, repressão violenta pelo simples fato da pessoa participar de um grupo diferente cuja existência é considerada intolerável. A legislação transportará todos os que apoiam a causa palestina para Gaza, mas eles paradoxalmente não deixarão de ser ingleses ou de estar dentro da Inglaterra. Isso demonstra inclusive que não estamos diante de uma política criminal e sim de uma nova espécie de magia autoritária.

Além de tudo o que eu disse acima existe algo profundamente perigoso nessa Lei. Em janeiro de 1649, o Parlamento decapitou Charles I rejeitando tese de que a soberania e o rei estavam identificados. Isso obviamente não encerrou, mas apenas acirrou a guerra civil. Em junho de 2025 o Parlamento quer decapitar a soberania popular, criminalizando a liberdade de consciência, expressão e manifestação de uma parcela da população inglesa. Uma nova guerra civil inglesa está sendo declarada?

PS: Se você quiser tomar conhecimento da evolução histórica recente das manifestações e da maneira como elas eram tratadas na Inglaterra até a presente ruptura consulte o seguinte texto Briefing: Palestine Action.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 25/06/2025