Uma Introdução à Democracia Financeira

por Alfredo Pereira Jr.

Com o advento do capitalismo financeiro, no Séc. XXI, se estabelece um novo conceito de dinheiro, que não mais repousa nos lastros metálicos, em papéis autenticados pelas instâncias oficiais ou na riqueza material (como o petróleo refinado), mas na confiança que a sociedade deposita em quem o emite. Esse novo conceito, embora seja inicialmente de interesse daqueles que operam com a especulação financeira, também abre possibilidades de aprofundamento da democracia, passando da democracia formal, já existente no capitalismo liberal, para uma democracia econômica efetiva, na qual a totalidade da população teria recursos para adquirir e consumir os produtos necessários para sua sobrevivência. A razão disso é que emitir dinheiro deixou de ter como pré-requisito a propriedade de bens imóveis ou móveis, ou, em outras palavras, o poder social deixa de ser regido pela propriedade privada dos meios de produção e/ou outras formas de riqueza material, para se basear na posse de dinheiro. Como o dinheiro é um bem público, não pode ser propriedade pessoal, mas evidentemente é objeto de posse privada.

Para se instaurar esta democracia econômica, é preciso que o estado tenha um caráter popular, isto é, que seja defensor dos interesses do povo, efetivamente promovendo o bem estar social. O estado soberano tem o poder de emitir dinheiro e o distribuí-lo; sendo um estado popular (eleito livremente pelo povo), pode e deve financiar atividades produtivas que gerem os bens de consumo popular, e reforçar a renda das pessoas e famílias para que possam adquirir estes produtos. Neste contexto, o conceito de “democracia econômica” se efetiva como “democracia financeira”, definida como o acesso igualitário de todo o povo ao dinheiro emitido pelo estado. O acesso pode ser indireto, como, por exemplo, no financiamento público de cooperativas populares de produção de alimentos, ou direto, mediante o depósito de valores em conta corrente, como por exemplo na concessão de bolsas e benefícios.

Não se pode esperar que haja primeiro uma transferência de riqueza dos ricos para o estado, por meio de impostos, para depois o estado repassar estes recursos para a maioria da população. Os regimes social-democratas do Séc. XX fracassaram em boa parte devido às represálias que o grande capital adotou contra os governos que pretendiam financiar o bem estar social com o capital acumulado pela elite econômica. Independentemente de considerações éticas, que não deixam de ter validade na avaliação da conduta dos indivíduos, é preciso lembrar que o sistema capitalista funciona mediante a realização do lucro dos investidores, pois é do lucro que deriva seu poder na sociedade, o qual lhes possibilita colocar as pessoas despossuídas para servi-los, em troca de uma remuneração negociada; caso o lucro não ocorra, seus empreendimentos deixam de ser atrativos; então, eles retiram o capital do negócio não lucrativo e o alocam em investimentos mais promissores.

Eventualmente os grandes capitalistas e seus conglomerados financeiros podem favorecer iniciativas de transferência de renda, como programas piloto de Renda Básica, mas estes serão forçosamente de pequeno alcance, pois se implantarem programas universais não terão dinheiro suficiente para financiar o montante necessário para sua execução, e, mais importante, isso irá contra seus maiores interesses, que são, por exemplo: contar com mão de obra servil para limpar suas casas e cozinhar suas refeições; extrair riqueza do subsolo e da terra; operar as máquinas das indústrias, operar computadores (que inclusive fazem as movimentações financeiras) e prestar os serviços requeridos para manutenção de seu alto padrão de vida.

Portanto, para se implantar uma democracia financeira, com redução da desigualdade econômica, o estado precisa ser monetariamente soberano, emitindo moeda de varejo (ou seja, de uso geral, não apenas em transações entre instituições financeira) e a repassando para o povo, por meio de programas de transferência de dinheiro (“cash transfer”), como o Bolsa Família – o Brasil é pioneiro neste tipo de iniciativa.

Decerto há problemas no caminho de transição do capitalismo liberal financeiro para uma democracia financeira plena. Primeiro, como o dinheiro passou a ser uma construção social imaterial (digital, virtual, institucional, um “bilhete” que assegura um certo valor ao portador, como já indicado pela teoria ‘Cartalista’ de Knapp, há 100 anos), então seu fluxo na sociedade está sujeito aos percalços que caracterizam o mundo da Internet, como os diversos tipos de fraudes, golpes, pirâmides, charlatanismos, etc. que infelizmente sempre encontram vítimas que possibilitam que o ilícito prospere. Segundo, há uma feroz resistência ideológica e prática do grande capital, pois os donos do poder financeiro conhecem os “podres” do  sistema, e querem a todo custo não só manter segredo do que Ellen Brown chamou de “mercado das sombras” (operações financeiras de grande vulto que no mínimo atentam contra o interesse público) , como também impedir na prática que a regra da escassez de dinheiro no bolso do povo, essencial para o capitalismo liberal funcionar a contento, não seja violada.

A grande bandeira contra a democracia econômica sempre foi e continua sendo o fantasma da hiperinflação, que era de fato um grande problema na época do papel moeda, em que o abuso de emissões monetárias pelos estados nacionais, e a circulação descontrolada do papel moeda, geravam impactos nos preços dos produtos de consumo popular, causando a médio prazo a revolta dos trabalhadores contra os governos e respectivos estados perdulários. Como antídoto contra esse risco, temos a Moeda Digital do Banco Central na modalidade varejo (no Brasil, chamada de DREX, mas não formatada na modalidade varejo), uma forma de dinheiro que seria emitida pelo estado e depositada em contas de pessoas físicas e jurídicas em bancos públicos. Esta forma de dinheiro, além de não onerar a chamada “dívida pública” (que é na verdade uma dívida do estado com os investidores de quem capta o dinheiro para pagar suas contas), também é controlável de modo a impedir usos indevidos.

Em conclusão, sustento que a democracia financeira é possível e viável a curto/médio prazo, desde que haja uma inteligência empreendedora na sociedade, em particular na Administração Pública, capaz de implantá-la.

Alfredo Pereira Jr. – Professor de Filosofia da Ciência (aposentado) UNESP-Botucatu, Professor Credenciado no Mestrado em Doutorado em Filosofia da UNESP-Marília – Administrador registrado no CREA-MG – [email protected]

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Last Update: 24/03/2025