O golpe de Estado na Síria é mais um divisor de águas entre a esquerda que capitulou diante do imperialismo e a esquerda que ainda assume a política tradicional de defender as nações oprimidas. O portal Red Flag publicou o artigo Da Síria para a Palestina, a libertação vem de baixo, de autoria de Joseph Daher, que apoia a derrubada do governo nacionalista de Bashar al-Assad pelas milícias da Al-Qaeda financiadas pelos EUA. Para sustentar essa tese, ele usa o argumento absurdo de que o golpe foi uma revolta popular legítima.
O texto começa: “alguns argumentaram que esta ofensiva militar liderada pela ‘Al-Qaeda e outros terroristas’ era uma conspiração imperialista ocidental contra o regime sírio, a fim de enfraquecer o chamado ‘Eixo da Resistência’ liderado pelo Irã e pelo Hesbolá”. Aqui já aparece a posição pró-imperialista do autor. Ele ignora que o HTS, que liderou o golpe, é apenas a Al-Qaeda que trocou de nome. Ignora que o imperialismo tenta derrubar o governo de Assad desde 2005 e com muita violência desde 2011. E ignora que o Eixo da Resistência é uma força que luta contra o imperialismo. Basicamente, no primeiro paragrafo ele entra de cabeça na campanha do imperialismo.
O autor segue: “estes Estados, alegavam, eram aliados dos palestinianos e miná-los significava enfraquecer a luta pela libertação da Palestina. E o fato de a ofensiva militar do HTS e do Exército Nacional da Síria [mercenários apoiados pela Turquia] ter ocorrido apenas um dia após a conclusão de um cessar-fogo entre o Líbano e Israel foi considerado suspeito”. Sim, foi exatamente isso que aconteceu. A Síria de Assad era uma aliada dos palestinos, fornecia armas para a resistência, e, em Damasco, estavam as sedes de partidos como a Jiade Islâmica Palestina. O fato de a ofensiva começar logo depois de “Israel” ter sofrido uma derrota histórica é prova de que os sionistas estavam totalmente envolvidos.
Ele continua: “a ofensiva militar liderada pelo HTS e pelo ENS ocorreu num momento em que os principais aliados do regime sírio estavam enfraquecidos. As forças militares russas tinham-se concentrado na sua guerra imperialista contra a Ucrânia, enquanto o Irã e o Hesbolá tinham sofrido um golpe após a guerra de Israel no Líbano. Tudo isto reflectiu a fraqueza estrutural geral do regime sírio a nível militar, económico e político, daí a razão pela qual ruiu como um castelo de cartas”.
Essa tese não é real. O Hesbolá se enfraqueceu militarmente com a guerra, mas saiu vitorioso, o que o fortaleceu politicamente. O Irã está se mostrando a força dominante na região com sua supremacia militar sobre os sionistas. E os russos estão distraídos na Ucrânia, mas não eram incapazes de agir na Síria. O que aconteceu foi que o regime político de Assad se esgotou devido às sanções econômicas gigantescas impostas pelos EUA e também aderiu a uma política centrista. O problema não foi a fraqueza dos aliados, o problema foi que Assad se recusou a pedir ajuda aos aliados. Ele tentou se equilibrar entre o imperialismo e a resistência e teve o destino da maior parte dos “equilibristas”: ser derrubado por um golpe.
Mas o autor chega ao nível absurdo de afirmar que o imperialismo não participou diretamente do golpe: “nem os EUA nem Israel tiveram participação nestes acontecimentos; na verdade, eles estavam preocupados com os acontecimentos que antecederam até agora. As autoridades israelenses, por exemplo, declararam que o ‘colapso do regime de Assad provavelmente criaria o caos no qual se desenvolveriam ameaças militares contra Israel’”. Aqui o texto já entra no surrealismo político.
“Israel” e os EUA têm exatamente a mesma posição em todas as principais questões políticas no Oriente Médio. Os EUA tiveram como principal objetivo por anos derrubar o governo de Bashar Al-Assad, financiaram com bilhões de dólares a oposição, parte desse financiamento veio diretamente de “Israel”. A queda de Assad gerou a maior comemoração de Benjamin Netaniahu desde outubro de 2023. A derrubada de Assad não só era um objetivo de “Israel”, era um de seus principais objetivos.
O autor apenas chega a essa conclusão absurda porque ele não quer revelar que a sua política é exatamente a mesma dos EUA e do Estado sionista: derrubar o governo Assad. É o clássico golpismo de esquerda. No Brasil, esse fenômeno se expressou na esquerda que fez campanha pela derrubada de Dilma entre 2014 e 2016.
O autor continua: “além de ignorar a agência dos actores locais sírios, o principal problema do argumento promovido pelos apoiantes do chamado ‘Eixo da Resistência’ dentro do movimento de solidariedade palestiniano é que ele sugere que a libertação da Palestina virá de cima. Estes Estados, apesar da sua natureza reacionária e autoritária, e da orientação económica neoliberal, irão de alguma forma proporcionar a liberdade”. Isso é uma farsa. Os defensores do Eixo acreditam que o Hamas irá libertar a palestina, ou seja, o povo palestino em armas. Os aliados são exatamente isso, aliados dos palestinos.
Mas a segunda parte do argumento também é incorreta. Se o governo do Irã fosse reacionário como ele diz, por que haveria um choque com os EUA? Aqui aparece a tese principal dos que defendem a derrubada dos governos nacionalistas: eles seriam “autoritários”. O autor ignora totalmente a luta dos EUA contra um país oprimido, e se preocupa com a suposta “democracia” que hoje em dia não existe em lugar nenhum do mundo, nem mesmo na Europa e nos EUA.
Essa é a principal capitulação da esquerda mundial que defende as políticas do imperialismo. Invés de observar a luta de classes, defender as “democracias”.