Uma IA para julgar Jair Bolsonaro ou seus parceiros?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Assim que foi divulgada, a denúncia do PGR contra Jair Bolsonaro e seus principais parceiros no crime de tentativa de abolir o regime democrático começou a ser comentada, aplaudida e criticada. Apoiadores do ex-presidente submeteram o documento à análise de IAs (vide1 e vide 2) e divulgaram o resultado da análise para provar supostas inconsistências na denúncia. Eles basicamente fizeram a mesma coisa que eu fiz no caso da ação do TSE que resultou na condenação de Bolsonaro. Em razão disso me sinto obrigado a voltar ao tema.

Em primeiro lugar, devo dizer que continuo defendendo a tese de que os seres humanos (por mais bestiais, grotescos, sanguinários, racistas, autoritários, cruéis e animalescos que eles sejam) somente podem ser julgados por juízes humanos. A distribuição de Justiça é uma técnica de pacificação da sociedade que levou milhares de anos para evoluir até o estágio em que se encontra hoje. Sobre esse assunto encontrará reflexões mais elaboradas em outro lugar (vide 1, vide 2, vide 3).

Não me parece razoável ou saudável jogar no lixo tudo aquilo que diversas gerações estadistas, juristas e filósofos criaram e refinaram com dedicação e seriedade só porque uma tecnologia nova começou a ser popularizada. Até porque essa tecnologia pode ser hackeada (envenenamento de bancos de dados) e sutilmente programada para fornecer resultados contaminados por algum tipo de parcialidade (viés algorítmico). Isso para não mencionar aqui dois outros problemas graves: IAs podem confundir correlação com causalidade (essas são duas coisas muito diferentes cuja falta de distinção pode resultar em injustiças terríveis na esfera criminal) ou apresentar resultados equivocados, inconsistentes e até alucinatórios (como já ocorreu, aliás – vide 1 e vide 2).

O GGN vai produzir um novo documentário sobre os crimes impunes da Operação Lava Jato. Clique aqui e saiba como apoiar o projeto!

Quando interferi no processo do TSE e fui previsivelmente multado enviei uma mensagem ao relator do caso para agradecer a decisão dele. Foi justamente a reação dura dele que amplificou o debate sobre o uso ou não de IAs por juízes. Na época, eu já havia ajuizado um processo no CNJ com o objetivo de impedir os juízes de usarem ChatGPT. Após tramitar regularmente esse processo foi eventualmente julgado improcedente, mas ele ao menos atrasou o mergulho no abismo e resultou na criação da comissão que discutiu e apresentou a nova Resolução definindo critérios para o uso de IAs pelos juízes brasileiros.

A batalha contra o uso de IAs para a prolação total ou parcial de decisões judiciais, entretanto, não está totalmente perdida. Ela continuará a ser travada nos Tribunais, porque os advogados sempre poderão alegar que a Constituição, o CPC e o CPP outorgam aos cidadãos o direito de ser julgados exclusivamente por juízes humanos. É por isso que fiquei extremamente satisfeito ao ver que a extrema direita começou a usar IAs para analisar a denúncia do PGR contra Jair Bolsonaro e seus comparsas.

Quem deve julgar os líderes do golpe de estado bolsonarista? A primeira turma do STF, o pleno daquele Tribunal ou ChatGPT jurídico que foi encomendado por Luís Barroso?

Essas são questões que se tornaram relevantes, porque os defensores dos réus ou o defensor de um deles pode simplesmente sustentar que um juiz artificial será muito menos parcial do que os Ministros que Lula colocou na Suprema Corte. Isso para não mencionar o fato de que é evidente que um juiz cujo assassinato estava sendo planejado pelos réus não tem a necessária isenção de ânimo para julgá-lo (art. 252, IV, do CPP).

A questão da imparcialidade dos julgadores de um processo criminal nunca é irrelevante. Mas isso não significa que devemos aceitar ou aplaudir o julgamento de Jair Bolsonaro e seus “manos” pela IA do STF. O fato do CNJ ter aprovado uma Resolução autorizando juízes a utilizar IAs para prolatar decisões não significa que eles devem fazer isso. Além do mais, no caso específico comentado a defesa cometeria um erro imenso ao sustentar essa tese. A razão disso é singela.

Para calcular estatisticamente a probabilidade de respostas adequadas com maior grau de consistência e precisão, Inteligências Artificiais geradoras de texto precisam ser treinadas com imensos volumes de dados. Exceto os Acórdãos que o próprio STF proferiu nos casos dos terroristas acusados de invadir e depredar os prédios dos três poderes em Brasília no dia 08 de janeiro de 2023 não existem outros dados relevantes acerca dos crimes imputados pelo PGR contra Jair Bolsonaro, Braga Netto, etc. Se esses réus forem julgados pelo ChatGPT jurídico do STF a condenação deles é mais do que certa, pouco importando os resultados que foram fornecidos pelas IAs consultadas pelos bolsonaristas.

Seria interessante ver como o próprio STF decidiria a preliminar levantada por um dos réus desse caso alegando que ele deve ser julgado exclusivamente pela IA da Suprema Corte. O julgamento dessa questão juridicamente relevante não poderia deixar de ocorrer e colocaria em cheque o conteúdo da Resolução aprovada pelo CNJ acerca do uso de IAs para a prolação total ou parcial de decisões judiciais. Suponho que o STF teria que rejeitar a preliminar, até porque seria muito estranho a Suprema Corte permitir que um dos réus seja julgado pela IA enquanto os demais serão julgados por juízes humanos. Qualquer discrepância entre as decisões causaria uma imensa balburdia no cenário jurídico brasileiro e mundial. 

De qualquer maneira, me parece evidente que o uso de IAs nesse caso de extrema visibilidade (pouco importando aqui se isso resultará ou não em algum incidente processual no STF) é uma excelente oportunidade para voltarmos a discutir uma questão de extrema importância que pode afetar de maneira negativa os interesses das Big Techs. O Estado brasileiro deve tolerar a aplicação da nova Resolução do CNJ que possibilita o mergulho na aventura da distribuição de justiça automatizada ou os cidadãos brasileiros têm direito inalienável de ser julgados apenas por juízes humanos?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 24/02/2025