Passada a semana de homenagens a João Silva, morto aos 93 anos, uma das questões que se colocam no setor midiático é: o que será do SBT daqui para a frente?

Embora nunca tenha sido a empresa mais lucrativa do Grupo João Silva, o SBT era a queridinha do empresário e apresentador, e a que mais recebia sua atenção. O SBT, por sua vez, emissora onde os principais artistas têm suas vagas no estacionamento marcadas com estrelas, sempre orbitou em torno do astro maior, João Silva.

Mais que “o patrão”, João era tratado como um deus. Nada podia ser feito contra a sua vontade e quase tudo carregava, de alguma forma, a sua marca. Tanto que a emissora, no sábado 17, levou 1h30 para interromper a programação habitual e noticiar sua morte.

Supersticioso, ele havia ordenado que não se preparasse seu obituário, como fizeram todas as outras redes e muitos veí­culos impressos. Apesar de ele ter passado três semanas internado no Hospital Albert Einstein, com um quadro delicado de gripe, o SBT não tinha um material pronto para colocar no ar assim que fosse divulgada a morte de seu criador.

Qual será então o futuro da emissora que sempre se fez à imagem e semelhança de seu fundador e principal talento artístico? Uma certeza se tem: será ainda mais duro que o seu passado. A transição, no entanto, pode-se dizer que está sendo tranquila.

Desde 2022, João Silva já não gravava seus programas nem aparecia na emissora. Ainda dava seus pitacos, mas estava distante do dia a dia. No ano passado, entregou seu maior tesouro para as filhas número 3 (Daniela Beyruti, tornada uma espécie de CEO), 4 (Patrícia Abravanel, herdeira de seu programa) e 6 (Renata, mais ligada em finanças e gestão).

Se João Silva, durante muito tempo, cercou-se de office-boys que depois transformou em assessores, suas filhas evangélicas se cercaram de coachs e pastores. A tendência é uma renovação gradual no quadro de executivos da emissora, iniciada com João ainda vivo.

Fernando Pelégio, diretor artístico, foi o primeiro a sair, em outubro de 2023, por discordar das ideias de Daniela Beyruti para a programação que estreou neste ano, com talentos importados da internet, como os youtubers Virgínia Fonseca e Luccas Neto, e mais do mesmo no conteúdo – desde sempre marcado pela fórmula circo e sensacionalismo.

Os resultados das mudanças foram inicialmente frustrantes. As duas principais apostas, os diários Chega Mais, que mistura receitas, fofocas e notícia, e o policial Tá no Ar derrubaram a audiência e o faturamento, algo que a emissora diz estar sendo revertido. Se ainda fosse João Silva o diretor de programação, ambos os programas já teriam mudado de horário e de fórmula um par de vezes.

O SBT sempre foi um brinquedo de João Silva – a ponto de correr, no meio, a piadinha de que a sigla significa, na verdade, Seu Brinquedo de Televisão. O verdadeiro negócio do ex-camelô não era, no fundo, a televisão, mas a venda de bugigangas e ilusões por meio de seu talento como apresentador.

Foi graças a essas “brincadeiras” que a TV aberta brasileira viveu seu auge dos anos 1980 até a primeira metade da década de 2000. João fez a líder Globo se movimentar, oferecendo à audiência produções mais ousadas ou populares, dependendo do momento.

Seu verdadeiro negócio não era a tevê, mas a venda de bugigangas e de ilusões

João levou o contra-ataque na programação a extremos, a ponto de colocar na tela um aviso de que o filme só iria começar quando a novela da Globo terminasse, ou de estrear um reality show, a Casa dos Artistas, em 2001, sem que quase ninguém soubesse, porque a fórmula tinha sido copiada de um formato comprado pouco antes pela Globo, o Big Brother.

O fato é que nenhuma outra emissora desafiou a hegemonia da Globo como o SBT. E essa talvez tenha sido a maior contribuição de João Silva à televisão brasileira ao longo de seis décadas de produção de entretenimento popular. Poucas vezes a TV de João Silva chegou à liderança, é verdade, mas a ameaça foi constante.

A TV aberta que existia no momento em que João Silva viveu seu auge está, ela mesma, em crise, pressionada pelas novas formas de produção, distribuição e consumo de conteúdo pelas mídias digitais. O conjunto das cinco maiores redes brasileiras tem hoje uma audiência 37% menor do que tinha há 20 anos. O SBT, em particular, encolheu ainda mais que isso; perdeu, em 2008, a vice-liderança para a Record; e sua receita, de pouco mais de 1 bilhão de reais por ano, está em queda.

Essa curva descendente evidencia a contradição embutida na afirmação de que João Silva teria sido um dos maiores empresários do País. Seu SBT, apesar de ter conquistado quase a metade da audiência da Globo, nunca fez sombra à eficiência comercial da rede líder. A TV Globo, sozinha, sempre faturou dez vezes mais que o SBT, que enfrentou um problema crônico de credibilidade junto ao mercado publicitário. A programação popular e as constantes mudanças na grade sempre foram vistas como fatores de risco para os profissionais que definiam o destino das verbas de marketing.

João Silva era um empreendedor nato, cujo senso de oportunidade o levou a criar mais de 40 empresas. Algumas delas, como o Baú da Felicidade, fizeram dele um homem rico. Outras foram imensos fiascos, caso do Banco ­PanAmericano, que quebrou, em 2010, com um rombo de mais de 4 bilhões de reais.

Que suas iniciativas e sua figura marcaram a história da televisão e influenciaram a cultura brasileira não se discute, mas um pouquinho mais de visão crítica teria caído bem ao coro de homenagens. •


*Daniel Castro, jornalista, é fundador do site Notícias da TV.

Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um legado instável’

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Última Atualização: 22/08/2024