Doze anos separam o lançamento original de O Vento Que Arrasa, inicialmente publicado no Brasil pela extinta Cosac & Naify, e a nova edição do romance que projetou a escritora argentina, 51 anos, para o mundo. Nesse período, o livro não perdeu a atualidade, ao contrário: ele desvela aspectos da Argentina que, em 2012, eram apenas tendências que se insinuavam no horizonte.
Antes de O Vento Que Arrasa, a Todavia havia colocado no mercado brasileiro lançamentos anteriores e posteriores da autora: Não É Um Rio, ficção de 2021, e Garotas Mortas, de 2014, um de seus livros mais intrigantes, que traz à tona, de modo exclusivo, crimes e abusos reais ocorridos em Villa Elisa, pequena cidade de Entre Ríos, onde Almada nasceu e cresceu.
“Naquele período e nos anos seguintes, nós escutaríamos falar muito sobre esses crimes, junto a argumentos na linha de: ‘A vítima fez algo, ela tinha muitos namorados, o que vestia nessa noite?’.” A escritora, então uma adolescente, não conseguia não se rebelar contra essas interpretações.
“Com essas expressões, a sociedade as condenava de antemão. Mas minha mãe, que estava muito longe de ser uma feminista, conhecia a luta das mulheres. Tínhamos tias, sobrinhas, gente envolvida nesse estilo de vida mais solitário”, afirma. “E minha mãe, por mais que fosse aferrada aos valores católicos, não deixava de ver o abuso do homem: ‘Isso não está bem. Deus não vai perdoar’, ela dizia”.
Selva Almada recebeu a reportagem de CartaCapital na sede da Salvaje Federal, a livraria que montou com um par de sócias durante a pandemia, no bairro de Almagro, em Buenos Aires. “Não havia como montar um lugar físico nessa época e nos concentramos num selo para vender livros de autores que não eram da capital”, conta.
Nascida em Entre Ríos, Selva batalha para que se traga à luz a obra de escritores de diversas províncias. Hoje, o selo Salvaje Federal ajuda a promover festivais em vários pontos do país – na Patagônia, no chamado Litoral (Santa Fé, Entre Ríos) e outras partes. “É como se voltássemos ao que foi a literatura argentina em seus primórdios, com o predomínio do campo”, diz, enfatizando seu desejo de desfazer o “estereótipo de que (a literatura) teria nascido apenas nos cafés de Buenos Aires”.
Seu olhar para uma Argentina além-Buenos Aires estende-se à sua própria produção. O Vento Que Arrasa foi escrito após várias viagens à humilde região do Chaco, ao norte do país, e descreve uma paisagem muito diferente da frenética capital. Longe das luzes da metrópole, o campo de um calor escaldante já estava tomado pela presença de várias igrejas evangélicas.
“Aquilo, à época, me chamou muito a atenção, mas não cheguei a pensar em quais consequências teria”, diz ela. “Agora entendo que foi um trabalho realizado metodicamente por vários anos. Hoje, vemos como os evangélicos cresceram no cenário religioso argentino, e temos templos enormes aqui mesmo em Buenos Aires.” País historicamente católico, a Argentina os tem visto crescerem entre os fiéis. Hoje, os que se declaram católicos são 62,9% da população ante 15,3% que se dizem evangélicos.
“É uma mudança cultural importante, e só fui me dar conta de modo claro quando estávamos lutando pela Lei do Aborto (aprovada pelo Congresso argentino em 2020, depois de vários obstáculos e tropeços). Nós imaginávamos que íamos sofrer muito mais pressão da Igreja Católica, mas os mais combativos contra os direitos da mulher foram, na verdade, os evangélicos. E me lembrei de como eu primeiro os percebi, nas viagens ao Chaco”, diz Selva.
O Vento Que Arrasa não é, porém, essencialmente sobre religião, mas sobre a vida em cenários desolados, tidos às vezes como fora do mapa nos debates sociais e políticos, e nos quais até mesmo a família se forma e se desenvolve ao redor de laços que não são os tradicionais. A trama arranca quando o carro em que viajam o reverendo Pearson, um pastor, e sua filha, Leni, tem um problema. Eles são levados à oficina de Gringo Brauer, que, por sua vez, os recebe junto a seu ajudante, Tapioca, quase um filho, ou um agregado da casa.
O reverendo e a filha, que teve de se despedir de modo doloroso da mãe, encontram nessa espécie de família feita de recortes e afetos duvidosos, um modo instável, mas harmônico de viver. Flashbacks vão nos mostrando como essa reunião foi possível e quem eram, no passado, essas pessoas que formam o grupo.
Nessa convivência, os homens brigam; as mulheres são minoria e foram feridas; os mais jovens se viram entre suas carências de crianças e o que compreendem ser parte de valores que jamais chegaram a aprender por completo.
Outra obra de Selva que chegou ao Brasil pela Todavia, Não É Um Rio, foi, este ano, finalista do Booker Prize, prestigiado prêmio britânico. Apesar de contar com dois latino-americanos na lista de finalistas – ela e o brasileiro Itamar Vieira Júnior –, o prêmio acabou ficando com a autora alemã Jenny Erpenbeck.
“A cada ano nos fazem crer que, sim, desta vez, será para um latino-americano, e cada vez há mais latino-americanos nas listas”, diz a escritora, de regresso de Londres. “Mas parece difícil dar o passo.” •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma Argentina desconhecida’