A esquerda parece cada vez mais presa a um teatro político. Em vez de um trabalho contínuo de formação e organização, dedica-se à produção de atos públicos, petições e manifestações esporádicas que, embora grandiosas, carecem de consequência prática. Essa é a tese central de Ação Performática – análise institucional e luta de classes, de minha autoria, recém-lançado pela LavraPalavra.
O conceito de “ação performática” surgiu em 2017, em uma entrevista a CartaCapital, onde descrevi um padrão recorrente na atuação de partidos e movimentos progressistas: a crença de que a simples realização de eventos dá forma e substância à luta política. Mas há um equívoco nisso. Quando a ação se reduz à performance, o que se manifesta não é força, mas desorientação.
O livro traça um paralelo entre essa lógica e certas compulsões psicanalíticas. A esquerda, ao rejeitar sua própria estrutura e evitar um trabalho cotidiano de base, acaba encenando gestos de luta que, no fundo, ocultam um impasse mais profundo. Em termos psicanalíticos, trata-se de um comportamento próximo à “passagem ao ato” – uma forma de agir que não passa por elaboração, como um sujeito que tenta desesperadamente se afirmar diante de um “Grande Outro” que não o reconhece. Na prática, a militância se desenrola mais para ser vista pela grande mídia, pelas redes sociais ou pelo próprio capital do que para produzir mudança concreta.
Lacan afirmou que Marx deu sentido à vida dos explorados. Em um mundo marcado pelo desalento, a luta política é, para muitos, uma motivação existencial. Mas quando essa luta se reduz a uma busca por reconhecimento, em vez da transformação social, algo se perde. O que está em jogo aqui não é apenas um erro tático, mas um sintoma da crise da esquerda – que, ao temer a rigidez organizacional e a burocratização, acaba negando a própria necessidade de estrutura e estratégia.
O livro propõe um diálogo com a história do teatro. Se a dramaturgia clássica se baseava em um texto estruturado e ensaiado coletivamente, a arte da performance rompe com essa lógica: privilegia o gesto improvisado, individual e efêmero. Algo similar ocorre na esquerda atual. Na tentativa de se afastar do estigma da burocracia e do autoritarismo, movimentos progressistas adotam um estilo de militância que finge ser espontâneo, mas que, na prática, é apenas desarticulado.
O resultado é uma atuação fragmentada, marcada por ações sem continuidade e pela ausência de um trabalho diário de mobilização e debate. O custo disso é alto: a alienação das bases sociais e a incapacidade de consolidar avanços políticos duradouros.
Recentemente, um episódio ilustrativo desse fenômeno foi a estratégia de campanha do PT-PSOL em São Paulo. No segundo turno da eleição municipal, a chapa progressista organizou uma live com Pablo Marçal, adversário do primeiro turno. A iniciativa, feita sem um trabalho prévio de diálogo com a base e sem uma construção política consistente, revelou-se contraproducente. Um exemplo claro de ação performática: um gesto isolado, que não convenceu nem mobilizou e apenas reforçou o distanciamento da esquerda de sua própria militância. Uma das candidaturas progressistas que mais recebeu recursos fracassou, bem como aquele que foi o maior partido de esquerda da América Latina fracassa, perdendo suas bases. Cabe pensarmos no porquê.
Se a esquerda quiser sair desse ciclo, precisa encarar uma contradição fundamental: toda organização política progressista é, ao mesmo tempo, uma instituição dentro do sistema que combate. Seu desafio, portanto, não é negar a necessidade de estrutura, mas reinventá-la. Isso exige um compromisso real com a construção de novas instituições – permeadas por mecanismos de autocrítica, democracia interna e um trabalho constante de politização do cotidiano.
A política não se faz apenas no espetáculo dos atos públicos, mas no longo e árduo processo de organização e formação. Se a esquerda continuar confundindo performance com estratégia, seguirá cada vez mais desconectada de sua própria base – e, assim, fadada à derrota.
Recomendado por pensadores como Vladimir Safatle e Ricardo Antunes, Ação Performática busca aprofundar esse diagnóstico e apontar caminhos para a superação desta crise.