O senador Fabiano Contarato (PT-ES) publicou no portal direitista Poder360 um artigo intitulado 40 anos de redemocratização: a defesa contínua da democracia, tratando da posse do ex-presidente José Sarney (MBD) à Presidência da República, trazendo uma curiosa consideração sobre o regime político vigente desde o fim da Ditadura Militar (1964-1985). O senador levanta contradições que, ao mesmo tempo, expressam a desorientação da esquerda pequeno-burguesa e a incrível guinada à direita desse setor. Isso porque, enquanto defende o regime alicerçado sob a base da “Constituição Cidadã, de 1988, um texto de cunho iluminista ainda hoje extremamente moderno, relevante e inspirador”, segundo o ex-delegado da Polícia Civil, ele também defende o ataque aos direitos democráticos consagrados pelo texto constitucional, há muito pisoteados pela direita e que agora, também são atacados pela esquerda, a título de “defesa da democracia”, da mesma forma que os generais e os apoiadores do golpe de 1964 fizeram, na deposição de Jango e nos 21 anos subsequentes. Diz Contarato:
“Não há democracia sem respeito às instituições, sem liberdade responsável de expressão e sem justiça social. É nosso dever, enquanto congressistas e cidadãos, assegurar que o Brasil continue sendo um país onde todos possam exercer plenamente seus direitos. A democracia não se constrói só com discursos; exige ação, compromisso e, acima de tudo, coragem para enfrentar aqueles que tentam subvertê-la.”
Em primeiro lugar, o senador petista está completamente errado ao colocar “respeito às instituições” e “liberdade responsável de expressão” como pré-requisitos para qualquer coisa minimamente parecida com um regime democrático “de cunho iluminista”. O iluminismo, não custa lembrar, foi um movimento intelectual dedicado a combater o obscurantismo medieval, sendo característico de uma etapa histórica em que a burguesia ainda era uma classe oprimida e revolucionária que, para superar a aristocracia feudal decadente, propunha uma reorganização do Estado, onde a arbitrariedade dos déspotas de então fosse substituída pelo império da Lei, cuja finalidade principal, seria limitar o poder punitivo do Estado e garantir a máxima liberdade aos cidadãos.
Ao contrário do que diz Contarato, isso significava liberdade para um Voltaire desrespeitar abertamente instituições como a Igreja Católica e o Estado francês, incluindo-se aí o judiciário de seu país. A esse modelo de organização política, deu-se o nome de Estado democrático de direito, o que concretamente significa o seguinte: o poder de ação (e principalmente, de punição) do Estado seria limitado pelo direito; este, por sua vez, não seria produto de cabeças brilhantes ou de algum privilegiado de qualquer sorte, mas de cidadãos que se fariam representar por meio de legisladores eleitos para esse fim. Esclarecendo-se isso, nada mais frontalmente contrário ao espírito do que se compreende como Estado democrático de direito do que cobrar do cidadão “respeito às instituições” e defender “liberdade responsável de expressão”. O que, no entanto, seria “liberdade de expressão responsável”?
O ex-delegado fraseia sua posição de maneira vaga, mas em outra passagem, se entrega ao falar em “ataque orquestrado para tentar tirar, em vão, a credibilidade das urnas eletrônicas”. Concretamente, Contarato está defendendo a supressão da liberdade de expressão, impondo condições ao seu exercício que, na prática, significam a supressão do direito. Vejamos, porém, o que diz a Constituição que o parlamentar petista enaltece como “um texto de cunho iluminista ainda hoje extremamente moderno, relevante e inspirador”: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
As palavras de Contarato terminam sendo traídas por suas posições, uma vez que estas revelam uma oposição frontal à Constituição, ao espírito iluminista, ao que se entende desde o século XVIII como “uma sociedade livre” e à pretensa “defesa intransigente dos direitos fundamentais dos cidadãos”, proclamada pelo autor em seu artigo, porém de maneira claramente demagógica. O que realmente pensa o senador sobre o tema pode ser encontrado na passagem que diz:
“O Congresso tem papel fundamental não só em estabelecer uma legislação com penas exemplares (grifo nosso) contra quem atenta contra a democracia, mas também na fiscalização (grifo nosso) dos atos que possam ameaçar o Estado democrático de Direito.”
Traduzindo a passagem à luz do espírito do artigo, o que o parlamentar defende é repressão e censura contra determinadas posições políticas, de modo que os cidadãos que por ventura considerem mais democrático o voto em papel, não sejam simplesmente pessoas exercendo seu direito democrático de ter uma opinião sobre determinado tema da vida pública, mas criminosos. Se por um lado as posições de Contarato são contrárias a um regime verdadeiramente democrático, por outro, defender um regime baseado na censura e na repressão política “exemplar” (ou seja, no terror) é algo que os arquitetos da Ditadura Militar apoiariam sem vacilar. Não custa lembrar que a “defesa da democracia” e a “liberdade de expressão responsável” eram palavras de ordem presentes na justificativa desse que, seguramente, foi um dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil.
A “defesa da democracia” estava presente nos jornais que apoiavam o golpe de Estado de 31 de março, entre eles, O Globo, que voltaria a apoiar golpes de Estado no País, em 2016 com a deposição da presidenta Dilma Rousseff e em 2018, com a proscrição ilegítima de Lula, responsável por tirar o principal líder popular das eleições presidenciais daquele ano e levar Jair Bolsonaro (PL) à presidência da República. Da mesma forma, o “crime” de “desrespeitar as instituições” serviu para uma censura generalizada no País na época, assim como levou um incontável número de brasileiros ao cárcere e à tortura, de modo que, na prática, a “democracia” defendida por Contarato se parece demais com a “democracia de 1964”.
Por trás da demagogia, é claramente o que o Brasil tinha na Ditadura Militar o modelo de “democracia” que Contarato realmente defende, como que coroando a contradição fundamental do autor, que diz celebrar o fim de um regime que, na prática, apoiaria. Seu artigo é também uma homenagem à demagogia de Castelo-Branco, Costa e Silva, O Globo, Folha de S. Paulo, Estadão e demais golpistas da época, que diriam e escreveriam as mesmíssimas palavras para defender as mesmas posições.