Uma cúpula esvaziada?
por Maria Luiza Falcão Silva
Na próxima semana, o Brasil sediará um dos eventos diplomáticos mais esperados do ano: a 17a Cúpula do BRICS no Rio de Janeiro. O encontro, que ocorre em meio a uma conjuntura global instável, era visto como uma oportunidade de ouro para o governo Lula reafirmar seu papel como protagonista na diplomacia do Sul Global. No entanto, a ausência de dois dos principais líderes do bloco — Xi Jinping e Vladimir Putin — lança uma sombra sobre os objetivos políticos e simbólicos dessa reunião.
Ao que tudo indica, a China será representada pelo primeiro-ministro Li Qiang, enquanto Putin — impedido de viajar por um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) — deverá participar apenas virtualmente ou enviar um chanceler. A Cúpula, assim, corre o risco de se tornar uma vitrine de ausências estratégicas justamente quando o Brasil busca reafirmar seu prestígio internacional.
A cúpula que Lula sonhava
Desde que voltou à presidência, Lula vem desempenhando o papel de articulador global, com falas incisivas sobre a necessidade de uma nova governança internacional. “É preciso reinventar a governança global, porque ela está falida”, declarou em diversas ocasiões, criticando a paralisia da ONU e o poder de veto das potências ocidentais.
Nesse contexto, a Cúpula do BRICS no Brasil seria o ponto alto de sua diplomacia presidencial. Esperava-se uma imagem histórica: Lula ladeado por Xi Jinping, Vladimir Putin, Narendra Modi e Cyril Ramaphosa e cercado pelos novos membros do BRICS: Emirados Árabes, Irã, Indonésia, Egito, Etiópia.
Não é à toa que o governo brasileiro tratou o evento como “ensaio geral para a COP 30” de 2025, que também será realizada em solo brasileiro, em Belém, em novembro. Mas o brilho dessa projeção começa a se ofuscar diante do cenário real.
A ausência de Xi: sinal de distanciamento?
A decisão de Xi Jinping de não vir ao Brasil não foi acompanhada de justificativas oficiais. No entanto, analistas indicam múltiplas razões possíveis: a necessidade de focar em questões internas, a delicada situação econômica chinesa e um movimento estratégico de reduzir a exposição internacional do líder, num momento de intensa rivalidade com os Estados Unidos.
Segundo o pesquisador Zuenir Ventura Jr., da Academia de Ciências Sociais da China, “a ausência de Xi não deve ser interpretada como um gesto hostil, mas como cautela diplomática. A China está sendo pragmática e calculista.”
Ainda assim, a simbologia importa. Para o Brasil, Xi não vir é um revés político. Afinal, a China é o maior parceiro comercial do país e o principal financiador de infraestrutura nos países do BRICS, além de ter sido peça central na expansão do bloco. Não ter xi presente é como dar uma festa e ver o convidado de honra recusar o convite de última hora.
Putin e o dilema jurídico-diplomático
A situação de Putin é mais complicada. Desde que o Tribunal Penal Internacional (TPI) expediu um mandado de prisão contra ele, o presidente russo evita viajar a países signatários do tratado de Roma — como é o caso do Brasil. Embora Lula tenha afirmado no passado que “Putin não seria preso aqui”, a repercussão internacional o obrigou a recuar. O Itamaraty passou a adotar uma postura cautelosa, alegando que “a decisão será da Justiça”.
É compreensível: prender Putin desmoronaria os BRICS; deixá-lo vir impune comprometeria o compromisso brasileiro com o direito internacional. Resultado: Putin não vem, vai participar de forma remota. E o Brasil respira aliviado — mas com sabor de derrota diplomática.
O que resta ao anfitrião?
A ausência de Xi e Putin não esvazia totalmente a cúpula, mas muda radicalmente o jogo. Resta a Lula reforçar a narrativa de que o BRICS é um projeto coletivo, que vai além das figuras individuais. A presença de Narendra Modi (Índia), Cyril Ramaphosa (África do SUL) e alguns representantes dos novos membros pode garantir o andamento das pautas: expansão do Novo Banco de Desenvolvimento, e Cooperação Sul-Sul em energia, maior participação do grupo na Governança Mundial.
Além disso, o Brasil pode aproveitar para destacar temas de seu interesse, como:
- financiamento climático para países em desenvolvimento;
- defesa da Amazônia como patrimônio global do Sul;
- articulação entre BRICS e a COP 30.
Mas tudo isso ocorrerá sob o peso do que poderia ter sido. A imprensa internacional, que adora narrativas simbólicas, já começou a falar em “cúpula esvaziada”.
Em reportagem do Financial Times, é destacado que “essa será a primeira ausência de Xi em uma cúpula do BRICS desde 2013 — um fato que reafirma o caráter estratégico dessa decisão”. O Financial Times ironiza a ausência de Xi como “um golpe na tentativa brasileira de ser a voz do novo mundo”. .scmp.com+8m.economictimes.com+8economictimes.indiatimes.com+8.
É inevitável que a imagem da Cúpula seja impactada. A situação se agravou com a inusitada “Guerra dos doze dias” entre EUA/Israel e o Irã. Há a possibilidade de outros países como o Irã e o Egito não comparecerem também. E a morte da brasileira Juliana Marins criou um certo constrangimento entre o governo brasileiro e o da Indonésia.
As ausências demostram que a reunião se dará sob pressões externas e tensões geopolíticas. Essas ausências não significam recuos. Refletem o desconforto que a emergência de um novo mundo multipolar provoca nas velhas potências e condições geopolíticas adversas.
O Sul Global perderá a chance de se exibir unido, desafiando a hegemonia ocidental; e o Brasil a oportunidade de liderar esse gesto.
Lula e sua diplomacia terão o desafio de reafirmar, mesmo sem as estrelas principais no palco, o compromisso com a multipolaridade, com a paz, com o desenvolvimento sustentável e com a autonomia e a capacidade de cada país do BRICS de definir seu próprio curso.
Não estarão todos presentes fisicamente, mas estarão os povos do Sul Global, com suas demandas por justiça climática, por desenvolvimento soberano, por voz nos organismos multilaterais. A cúpula do BRICS reafirmará um princípio essencial: o mundo está mudando e nada poderá conter esse movimento.
O BRICS não é apenas um clube de países. É uma proposta de futuro. É a construção de uma nova gramática internacional, em que a cooperação substitua a dominação, e a diversidade seja reconhecida como força não como ameaça.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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