Carta Aberta aos Ministros do STF, por Marcos Dantas

Excelentíssimo Senhor Ministro Luiz Roberto Barroso,
Presidente do Supremo Tribunal Federal
Excelentíssimos Senhores Ministros e Senhora Ministra,
ASSUNTO: Artº 19 da Lei 12.965 (Marco Civil da Internet)

Sou usuário da internet desde 1992, quando as primeiras conexões chegaram ao Brasil durante a Rio 92.

Àquela época, senhores Ministros, senhora Ministra, a conexão e acesso à internet se fazia através de um serviço denominado genericamente “provedor de acesso”. Eu pagava uma assinatura para o serviço privado Alternex, oferecido pela ONG Ibase, fundada pelo saudoso Betinho. Através de um software instalado em meu computador conectado à minha linha telefônica, eu fazia uma ligação para um computador do Alternex e, após ouvir uns ruídos típicos, surgia na tela do meu monitor de vídeo, uns tantos caracteres de comandos recortados contra um fundo preto. Por esses comandos, eu podia enviar ou receber e-mails, enviar ou acessar arquivos através de protocolos como Gopher ou FTP e outros. Depois de uma ou duas horas “navegando”, eu podia literalmente “sair” da internet, desligando a conexão. Minha linha telefônica, então, ficava livre para que eu voltasse a fazer ou receber chamadas telefônicas comuns.

Hoje em dia os senhores e a senhora sabem que já não é mais assim. Ao ligarmos o nosso aparelho celular ao acordar de manhã (caso não o tenhamos desligado ao dormir), já estamos na internet. Ao ligarmos o nosso computador começando nossa jornada diária de trabalho, já entramos automaticamente na internet. E nela permanecemos todo o restante do dia. Mas não “entramos” na internet como “entrávamos” a 30 anos atrás. Se queremos fazer buscas, usamos o Google; para enviarmos ou recebermos mensagens, o “WhatsApp” ou “Telegram”; para múltiplas relações profissionais ou sociais, o “Instagram”. Em nossos celulares, a rigor, não “estamos” na internet mas no Android (ou iOS). Entre nós e a internet cresceu e passou a intermediar todas as nossas atividades, uma outra camada – uma camada de negócios.

É possível, senhores ministros, senhora ministra, que algumas pessoas muito bem dotadas de conhecimentos técnicos ainda consigam hoje em dia realmente “navegar” na internet com plena liberdade de nela agir conforme seu livre arbítrio. A enorme massa da nossa população, inclusive este que aqui escreve, não tem mais acesso real à internet. Tem acesso ao Google ou ao X, ou a algum outro “aplicativo”, como se diz, proprietário ou controlado direta ou indiretamente por alguma daquelas grandes corporações.

Eu não preciso explicar aqui o que, com certeza, já foi sobejamente explicado aos senhores e à senhora: aquelas corporações desenvolvem programas de computação denominados “algoritmos” para, através deles, impulsionar mensagens ou posts que lhes proporcionam receitas e lucros. O documentário “O dilema das redes” de Jeff Orlowski (2020) ou uma ampla literatura como, por exemplo, o livro Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empoli (2020), explicam muito bem como se dá essa realização de lucros através da apropriação de dados pessoais que fornecemos gratuitamente para elas, através dos posts que publicamos ou “curtimos”.

Mas, espero, poder acrescentar alguns importantes detalhes para ajudá-los na tomada de tão decisiva decisão.

Em 1996, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma “Lei de Decência” (“Decency Act”), cuja Seção 230 declarava que os “provedores” (“providers”) de acesso à internet  não deviam ser responsabilizados pelos conteúdos através deles postados pelos seus usuários. Aparentemente, a lei “de decência” buscava garantir a “liberdade de expressão” dos usuários (punindo os excessos a posteriori, dependendo dos tribunais) e, ao mesmo tempo, isentar de problemas empresas que prestavam serviço de acesso à internet nos mesmos moldes daquele a mim então prestado pelo Alternex. Esses provedores de fato eram neutros em relação aos conteúdos que por ele transitavam, assim como uma operadora de telecomunicações ou os correios são neutros em relação ao conteúdo das mensagens que, por fios ou cartas, transitam pelos seus sistemas.

Essa lei, porém, viria a ter uma outra muito mais importante consequência, talvez inesperada até para os legisladores que à época a aprovaram. Segundo o especialista estadunidense Christian M. Dippon, a existência, hoje, de corporações do tamanho da Amazon, Alphabet, Meta e outras, muito deve à “proteção” que lhes dá a Seção 230. Ele adverte que se, no mundo, começarem a avançar leis ou regulamentos que anulem os efeitos, em outros países, da 230, a economia dos EUA poderá sofrer um golpe razoável. Segundo seus cálculos, os preços para os consumidores estadunidenses desses serviços subiriam; as receitas dos serviços de “nuvem” e de publicidade cairiam em 7,8%; poderiam ser perdidos 425 mil postos de trabalho; e o PIB dos Estados Unidos poderia perder 44 bilhões de dólares, anualmente. “Os intermediários da internet são cruciais tanto para a economia doméstica quanto para as exportações dos Estados Unidos para o resto do mundo”, garante Dippon[1].

Devem ser mesmo! Em 2023, as receitas da Alphabet somaram USD 307,4 bilhões; da Meta, 134,9 bilhões. Fiquemos só nestas duas. O lucro líquido da Alphabet, aquele distribuído aos acionistas após recolhidos todos os impostos (nos Estados Unidos), foi de USD 73,8 bilhões; o da Meta, de USD 39,1 bilhões. Para se ter uma idéia das dimensões desses números, em 2023, o saldo positivo da balança comercial do Brasil (digamos, o “lucro líquido” do Brasil) foi de USD 99 bilhões. Como argumenta Dippon, a “inimputabilidade dos intermediários” está carreando do mundo para a economia dos Estados Unidos, uma enorme riqueza extraída dos dados que todos nós lhes fornecemos gratuitamente.

Porém é muito discutível, para dizer o mínimo, que essa riqueza esteja de fato beneficiando até mesmo a sociedade estadunidense como um todo. Parte desses escandalosos lucros é embolsada por um punhado de homens que aparecem todos os anos nas listas dos mais ricos do mundo: Bill Gates, Mark Zuckerberg, Jeff Bezzos, o estelar Elon Musk, alguns outros. Grande parte, em torno de 30%, é embolsada por um punhado de instituições gestoras de ativos financeiros, associadas a todas essas corporações: Vanguard, BlackRock, State Street, Geode Capital, JP Morgan Chase, algumas outras. O restante também gira no mercado financeiro especulativo: fundos de previdência, corretoras de ações, bancos, grandes investidores individuais. Ou seja, a decisão que os senhores e a senhora vão tomar nos próximos dias, afeta muito mais do que questões como “liberdade de expressão” ou “fake news”. O que está em jogo são as próprias regras profundas, nem sempre muito claras, obscuras mesmo, do funcionamento da economia capitalista nos dias atuais. Por isto mesmo, o intenso lobby que advogados da Alphabet ou Meta fazem em defesa do artigo 19: ele é a transcrição brasileira, ingenuamente inserida no MCI, da Seção 230 da lei estadunidense. Ingenuamente?

Nem de longe, Facebook ou X podem ser definidos simploriamente como “provedores de acesso” ou “intermediários de internet”. São como plantas trepadeiras sugando a seiva econômica da sociedade através da majestosa árvore da internet. “Provedores” ou “intermediários”, hoje em dia, seriam as próprias operadoras de telecomunicações cujos serviços assinamos para, na tela de nossos aparelhos celulares, vermos brilhar os logos do WhatsApp ou do Chrome. As operadoras são neutras, como sempre foram, em relação aos conteúdos. Linkedin ou TikTok obtém suas receitas graças aos conteúdos que produzimos ao trafegar através deles. Neste sentido, seus modelos de negócios aproximam-se dos das emissoras de rádio ou televisão. Com uma grande diferença. Emissoras de rádio ou TV precisam investir não somente em tecnologia, equipamentos e instalações como essas “plataformas”, mas sobretudo em gente para produzir os conteúdos que atrairão público para os seus anunciantes: jornalistas, artistas, animadores de auditório, roteiristas, produtores, e tudo o mais necessário à sua produção, inclusive marceneiros, cozinheiros, motoristas, eletricistas, trabalhadores anônimos mas também necessários à realização de seus programas. Instagram, TIkTok e seus aparentados não investem em nada disso. Quem investe é o “usuário”, caso tenha por projeto de vida se tornar “influenciador”. O risco é todo dele ou dela: comprar a filmadora, computadores, outros equipamentos necessários a uma boa produção; montar algum ambiente próprio para a gravação de imagem e som; identificar seu nicho de audiência; elaborar seus roteiros; aprender ou saber se comunicar com a voz e corpo etc., etc. Se der certo, parabéns! O YouTube ou TikTok repartirão com ele ou ela uma parte (pequena) dos lucros. Se der errado, se não alcançar o sucesso que o candidato a “influenciador” se julgava merecedor, problema dele ou dela… a plataforma não perdeu nada. Nem Marx teria imaginado tamanha mais-valia!

Mas a rigor, a imensa maioria dos usuários e usuárias de Facebook, YouTube, TikTok e similares não está investindo seu tempo de atenção visando se tornar “influenciador(a)”: quer apenas “curtir” algo que considere interessante. E pode passar horas interagindo com fotos ou vídeos de gatinhos, comentários sobre vulgaridades cotidianas, quando não com imagens, digamos, mais excitantes… Assim gerando com os dados pessoais que fornecem gratuitamente, lucros bilionários para Vanguard, BlackRock, StateStreet…

Daí, uma segunda muito importante diferença entre conteúdos disseminados desregradamente através dessas plataformas e conteúdos produzidos através dos canais das emissoras de radiodifusão: a liberdade de expressão na imprensa e na radiodifusão, sempre, em qualquer democracia, está submetida a códigos relativamente coercitivos explicitados em lei ou tacitamente aceitos nos comportamentos de seus profissionais: jornalistas, artistas, comunicadores etc. Um exemplo simples: praticamente nenhum jornalista ou convidado a uma entrevista, falando para uma câmara de televisão ou microfone de rádio, empregará alguma palavra de baixo calão. Um código não escrito mas socialmente estabelecido impõe esse limite. As organizações de comunicação social constituem elas mesmas, com suas hierarquias profissionais e seus habitus comportamentais, sistemas restritivos que, porém, por isto mesmo, asseguram um mínimo de qualidade e confiabilidade ao debate público, ainda que possamos

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Last Update: 27/11/2024