Segundo a definição do dicionário da Academia Francesa de 1798, a utopia é o “plano de governo imaginário em que tudo é perfeitamente regulado para a felicidade comum”. Na verdade, é muito mais: é uma narrativa que apela a uma comunidade imaginada, mas que também convida a viver desde logo segundo regras em contraposição com múltiplas formas de opressão e que, pelo seu enunciado e experiência, constituem um impulso para mudanças radicais na sociedade.

Essa esperança utópica constituiu um dos fundamentos das aspirações democráticas e inspirou possantes programas políticos progressistas. Essa herança utópica é grandiosa. Promoveu a resistência contra a desigualdade e, ao chegar ao tempo da Revolução Industrial, foi uma base de contestação dos “moinhos satânicos”, seguindo um verso do poeta britânico William Blake, as fábricas que espoliavam o trabalho e desse modo trituravam os corpos de crianças, homens e mulheres.

As utopias foram o fruto da imaginação de personalidades raras. Uns foram figuras políticas, outros modestos escritores, alguns eram clérigos desavindos e todos conviveram com a dilaceração forçada pelos alvores do capitalismo desde o século XVI.

Como gênero literário, as utopias arrastavam a nostalgia da antiguidade, a partir dos seus mitos e viagens, e, ao mesmo tempo, como manifesto político atual, erguiam a promessa da distribuição futura dos bens e até do fim da propriedade privada.

O filme Megalópolis, de Francis Ford Coppola, é um sinal dessa mutação. Replica a antiguidade (passa-se em Nova Roma, festeja-se a Saturnália, há um Senado) e o futuro é descrito como o presente do passado, mas essa projeção só é possível pela invasão da tecnologia que permite o controle do tempo e a opulência.

Orwell não podia estar mais em desacordo. A sua experiência de vida afastava-o dessa fantasmagoria de Huxley, não só porque vivera a guerra em Londres, cidade bombardeada pelos nazistas, como antes participara na luta contra os fascistas e se opusera à repressão stalinista na tragédia da república espanhola.

Encurralado pelas forças telúricas da guerra e da tirania, 1984 foi o mais sombrio dos seus livros, mas entreabriu uma porta de esperança. Margaret Atwood, talvez a escritora distópica contemporânea mais influenciada por Orwell, sugeriu que o ensaio final sobre a novilíngua, escrito em inglês corrente e no pretérito, ou seja, olhando para o passado a partir de um futuro indefinido, demonstraria que o regime do Grande Irmão teria fracassado, pois só assim poderia ser objeto de curiosidade e estudo futuro, não tendo imposto a sua linguagem.

Talvez então se possa concluir que, se a utopia criou a sua distopia, esta se esgota como uma apologia desumanizada do capitalismo tardio – e que ninguém tem a última palavra.

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Inquietante mundo novo’

Em Admirável Mundo Novo, Huxley profetizou a era de indivíduos submissos – Imagem: BBC

Segundo Orwell, a violência e a opressão continuariam a ser o cerne do totalitarismo – Imagem: BBC

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Last Update: 26/12/2024