Toda literatura futurista é, antes de mais nada, um diagnóstico sobre o presente imediato de sua fabricação: imaginamos o amanhã disponibilizado pelo nosso hoje. H. G. Wells leva à literatura o tempo de Darwin; George Orwell, em 1984, fala do mundo depauperado do imediato pós-Segunda Guerra Mundial; Philip K. Dick desenvolve em seus livros um peculiar misto de paranoia, drogas alucinógenas e Guerra Fria, típico da experiência estadunidense no início da segunda metade do século XX.

Membrana, romance de Jorge Carrión recém-lançado no Brasil, apesar de ser uma ficção científica narrada por uma Inteligência Artificial (e que se passa no ano 2100), é também um livro sobre o presente. Encontramos na narrativa o fluxo desconexo de personagens e o acúmulo de bugigangas globalizadas tão característicos de nosso cotidiano. Dada a velocidade no encadeamento das cenas, é difícil saber o que é de fato importante ou significativo – consequentemente, é difícil para o leitor apegar-se e se importar.

A consciência artificial que conta a história é responsável por um “Museu do Século XXI”: todo capítulo se inicia com a lista de alguns artefatos “em exposição”, que vão desde “Adão e Eva”, pintura de ­Albrecht Dürer de 1507, até algo chamado ­“PageRank Accelerated”, de 2038, passando por coisas como o “Mosaico de Informação de Arquivo sobre o Cubo”, uma “projeção” de 2094, e o “App Rewrite no iPhone Mega”, um “objeto histórico” de 2030.

Os artefatos do passado, históricos e verificáveis (um tear mecânico, um protótipo do míssil “Kettering Bug”, o filme ­Blade Runner, de 1982), mesclam-se àqueles do futuro, que só existem em Membrana.

Membrana. Jorge Carrión. Tradução: Michelle Strzoda. Relicário (200 págs., 68,90 reais) – Compre na Amazon

Essa mistura, que pode servir para tornar evidente a pesquisa do autor na realização do livro, evidencia também o desnível entre aquilo que de fato existiu e aquilo que Carrión conseguiu imaginar. Essa defasagem mostra que a verossimilhança da ficção futurista não está no convencimento do leitor sobre algo que não existe, e sim na capacidade de ressignificar aquilo que já existe.

A narradora artificial de Membrana não fala apenas dos artefatos, mas de si própria e daquilo que representa: “Este Museu não é apenas psicanalítico e abstrato, também é um tecelão redundante, mandíbula que não para de mastigar linguagem”. A “membrana”, que torna possível o “Museu”, é feita de “seus pastores e seus bispos e seus apóstolos”, “centenas, depois milhares, centenas de milhares muito mais tarde, no limiar do adeus, justificando sem saber o depois”, que se “tornavam a igreja da nova religião, e organizavam operações secretas e partiam para as florestas”.

O tom geral do romance é de uma indistinção atordoante – tudo equivale a tudo, todas as conexões são possíveis, todos os saltos são fáceis, gratuitos. Por isso, é inevitável notar a enumeração como principal recurso formal: “A peste negra, a gripe aviária, o tifo, a Aids, o câncer, a Covid–19, o Sars–43, a doença alfanumérica. Os pesticidas e as armas biológicas. A munição, as bombas, a guerra”, sempre seguida pela explicação amorfa que intensifica o “mistério”: “Embaralhamos milhões de planos, tantos naipes, como se lêssemos repetidamente o futuro da humanidade em cartas de tarô com uma única carta que se repetia em todas as combinações, a da Morte tão terrível”.

Membrana, de resto, denuncia um problema do nosso tempo, que aparece em um livro anterior do autor, Contra a Amazon: o apego acrítico à inovação tecnológica, que enfraquece nossos laços sociais, danificando a experiência vital dos indivíduos. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Tove Jansson (1914–2001), nascida na Finlândia, escreveu seis romances. Um deles, O Livro do Verão, chega ao Brasil pela WMF Martins Fontes (184 págs., 54,90 ­reais). Em 22 capítulos breves, acompanhamos uma menina de 6 anos que passa as férias com a avó em uma ilha remota.

O Rochedo de Tânios, que deu ao franco-libanês Amin Maalouf o Prêmio Goncourt em 1993, ganhou uma reedição (Vestígio, 140 págs., 74,90 reais). O romance, cujo cenário é uma aldeia libanesa, adota o tom fabular para narrar uma história passada no tempo do Império Otomano.

Nome de relevo da ficção estadunidense, Percival Everett reimagina, em James (Todavia, 320 págs., 89,90 reais), As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, numa narrativa que inclui um homem escravizado em travessia pelo Rio Mississippi. O livro venceu o National Book Award.

Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um romance meio atordoante’

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Last Update: 22/05/2025