Quando despontou no calendário paulistano, em março de 2014, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) teve adesão imediata do público. Naquela primeira edição, as dez produções estrangeiras convidadas, com sessões em nove espaços da cidade, atraíram mais de 14 mil espectadores.
Embora o Brasil já contasse com festivais de artes cênicas consolidados e realizados anualmente em Brasília, São José do Rio Preto e Curitiba, para citar alguns, a capital paulista não abrigava um evento teatral desse porte desde a última edição do lendário festival comandado por Ruth Escobar (1935–2017), organizado de maneira intermitente entre 1974 e 1999.
Idealizada pelo encenador Antonio Araújo, cofundador do Teatro da Vertigem, e pelo produtor e gestor cultural Guilherme Marques, respectivamente diretor artístico e diretor-geral de produção, a MITsp completa dez edições – em 2023, não houve evento. Nesse período, trouxe aos palcos paulistanos 179 espetáculos, entre brasileiros e internacionais (de 46 países), a maioria deles inéditos no País, e somou uma plateia de cerca de 200 mil pessoas.
Ao longo desses dez anos, houve também a consolidação dos demais eixos que constituem a mostra: o reflexivo, com debates, aulas-magnas e produção de leituras críticas da cena; o pedagógico, com oficinas, intervenções performativas e residências artísticas; e a MITbr – Plataforma Brasil, que reúne um conjunto de trabalhos nacionais apresentados ao público e a programadores de diversos estados e países em paralelo à grade principal.
A programação da 10ª MITsp, que ocorre de 13 a 23 de março na capital, está, porém, muito mais enxuta em relação às anteriores, por conta da redução dos patrocínios e da variação do câmbio. Aprovado na Lei Rouanet, o projeto não conseguiu captar todo o valor do orçamento e tampouco foi contemplado em editais públicos.
“Os desafios são constantes, porque não temos políticas públicas perenes e consistentes para a cultura e as artes. Além disso, lidamos com um modus operandi de gestão que torna difícil o planejamento a longo prazo”, diz Guilherme Marques. “As respostas (sobre apoio ou patrocínio) vêm tardiamente, às vezes um mês antes de o evento começar. Mas há muito a celebrar, afinal uma mostra com tal envergadura completa uma década.”
O sonho de uma edição comemorativa mais robusta, com uma programação que chegasse a 15 atrações internacionais e 15 nacionais – meta que remonta ao início do evento, jamais alcançada – precisou ser adiada. Os demais eixos também sofreram cortes consideráveis.
Até a semana anterior ao início do evento, os diretores tentavam “salvar” o décimo espetáculo programado para a MITbr, sem sucesso. “Me recuso a falar em desenho curatorial para esta edição. É o que deu para fazer”, diz Antonio Araújo.
Ainda assim, ele destaca três elementos que, embora “desidratados”, permanecem na curadoria. Um deles é a exaltação da cultura popular, por meio da homenagem ao multiartista Antonio Nóbrega, que apresenta Mestiço Florilégio. Outros dois são a preferência por obras do Sul Global e por aquelas que trazem elencos maiores, como expressão do fazer coletivo.
“Não nos rendemos à lógica dos monólogos, que, por causa da necessidade de cortes de custos, parecem a solução mais fácil e mais barata. Os quatro espetáculos internacionais têm um grupo significativo de gente em cena”, afirma Araújo.
São eles: Dambudzo, de Nora Chipaumire (Zimbábue), artista internacional em foco; Vagabundus, de Idio Chichava (Moçambique); Gaivota, de Guillermo Cacace (Argentina) e A Vida Secreta dos Velhos, de Mohamed El Khatib (França). Completam o rol um trabalho de Chipaumire ainda em processo, acontinua – um obituário, um manual para uma vida vivida perseguindo a VIDA, e a estreia do brasileiro Réquiem SP, do coreógrafo Alejandro Ahmed.
“Não temos políticas públicas perenes e consistentes para as artes”, diz Marques, diretor da Mostra
Os diretores da MITsp garantem que, apesar das dificuldades, mantêm a aposta em temas e estéticas ousados e sintonizados com as questões contemporâneas. Nas nove edições anteriores estiveram no festival artistas de Israel, Palestina, Líbano, Ucrânia e Rússia, por exemplo, que trouxeram perspectivas provocativas sobre a realidade. Nomes importantes da cena internacional, como o polonês Krystian Lupa, a alemã Susanne Kennedy e o sul-africano Gregory Maqoma, entre outros, também apresentaram obras na mostra.
Talvez a força do coletivo seja um traço importante na edição de 2025 – tanto nos palcos quanto nos bastidores, considerando os esforços da equipe diante das mudanças na programação.
Vagabundus, escolhido para a abertura, é, nesse sentido, bastante simbólico. O espetáculo foi idealizado pelo coreógrafo e performer moçambicano Idio Chichava como expressão de uma comunidade que se forma por meio da dança e dos cantos.
Quando voltou a Maputo, capital de Moçambique, depois de anos vivendo na França, Chichava reuniu os 13 intérpretes em cena, no intuito de fomentar um grupo artístico profissional e colaborativo. Todos, inclusive o diretor, foram “educados” desde a infância nos movimentos, ritmos e energia da dança tradicional do país.
“Esse coletivo cria um vocabulário, uma nova gramática”, afirma ele. “Não temos nenhum texto, são apenas vozes, acordes. Sempre gosto de tocar o público não somente pelo gesto, mas também pela voz, para que os espectadores possam entrar na obra e fazer parte dessa viagem juntamente com os artistas.” •
Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um quê de festa, outro de lamento’