Um povo que esquece a sua história, é um povo que não tem futuro
Escrito por: Hoseung Ryu
Edição: Marina Soares Rossetto
A “Lei Marcial” – que determina um estado temporário na qual o controle do governo é transpassado dos civis para os militares- é um termo importante na história da democracia da Coreia do Sul. Após o estabelecimento do governo da Coreia do Sul em 1948, já houveram 16 declarações de lei marcial, além das cinco que já haviam ocorrido durante a guerra da Coreia. Por onze vezes, a instauração desta lei foi utilizada para manter o poder do regime ditatorial. A última vez que isso aconteceu, a lei durou de 27 de outubro de 1979 até 24 de janeiro de 1981. Depois que o primeiro ditador militar, Park Chung Hee, foi assassinado pelo diretor do Serviço de Inteligência Nacional, Kim Jae Kyu, em 26 de outubro de 1979, foi declarada a lei marcial no dia 27. Na ausência do poder, Jeon Doo Hwan, que liderava a investigação do assassinato do Park, assumiu o poder militar a partir de um golpe militar em 12 de dezembro de 1979. Com o poder militar em mãos, em 17 de maio de 1980, ele deu mais um golpe que resultou no alargamento da lei marcial a todo país. Este fato levou ao fechamento de universidades, proibiu as atividades políticas e restringiu a imprensa. Para resistir à tentativa do estabelecimento do novo regime militar, iniciou-se um movimento democratico pelos cidadãos em Gwangju no dia 18. As tropas foram enviadas para a cidade para conter os opositores e houve um massacre contra os manifestantes nesse dia.
Como descrito acima, as declarações da lei marcial pelos governos ditatoriais resultaram em um grande sacrifício e dificultaram a democratização do país. Para não repetir a história triste, fortaleceram-se os requisitos sobre a lei marcial e deu-se o poder de retirar a lei marcial para o parlamento através de revisão da Constituição após a “Luta de junho pela democracia” em 1987. Essa mudança assumiu um papel importante para prevenir o abuso da declaração da lei marcial.
Mas, mesmo com as restrições legais e constitucionais, nesta terça-feira(03 de dezembro), às 10:28 da noite, a lei marcial foi declarada mais uma vez, depois de quarenta e cinco anos. O presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, fez um pronunciamento surpresa pela TV, decretando a lei marcial como uma medida de emergência. Segundo pronunciamento, a medida foi implementada com base nas seguintes razões: 1) a paralisia do sistema judicial pelo parlamento através de impeachment de juízes e procuradores, 2) a paralisia do sistema executivo pelo parlamento através de impeachment do ministro do Interior e Segurança, diretor da Comissão de Comunicação da Coreia e diretor da Secretaria de Auditoria e Inspeção, e tentativa de impeachment do ministro de defesa, 3) prejuízo das funções do país pelo parlamento através de rejeitar e cortar o orçamento do governo. Com essas razões, ele tentou justificar a medida como uma luta contra as forças comunistas e anti-estatais que tentam derrubar o sistema democrático e planejam a guerra civil.
Com a aplicação da lei, as forças militares e da polícia foram dispostas na Assembleia, no edifício do Comitê de Administração Eleitoral e nas ruas, todas as atividades políticas, incluindo manifestações, foram proibidas e a imprensa passou a ser controlada pelo governo. O líder do partido oposto, “Partido Democrata”, Lee Jae Myung condenou immediatamente que o declaro do presidente foi “ilegal” e “inconstitucional. O líder do partido do presidente, “Partido do Poder Popular”, Han Dong Hoon, também afirmou que a decisão do presidente era “errada”. O presidente da Assembleia, Woo Wun Sik, convocou os parlamentares para a votação de anular a lei e, na madrugada da quarta-feira (04/12), na qual 190 parlamentares de 300 se reuniram na Assembléia (a maioria dos parlamentares do partido do presidente não participou). Mesmo com a Assembleia fechada pelas forças armadas, os parlamentares conseguiram entrar no edifício e, à 1:00 da noite, fizeram uma sessão de emergência. Houve a tentativa de interferência pelas forças especiais, mas a votação para exigir a retirada da lei marcial foi aprovada unanimemente e, passadas mais de três horas, o presidente cedeu e suspendeu a medida às 4:30 de quarta.
Na quarta de manhã, depois da suspensão da lei marcial, os líderes dos partidos fizeram reunião com o presidente. Todo país ficou chocado com a sua justificativa para os líderes sobre o raciocínio dele: “A declaração da lei marcial foi uma advertência forte para o Partido Democrata”. Além disso, nas reuniões de interpelação, que estão sendo feitas a partir da manhã de quarta, foi descoberto que a ocupação das forças militares do edifício do Comitê de Administração Eleitoral foi para investigar o rumor sobre manipulação nas eleições parlamentares de 2024, em que o partido oposto ganhou maioria no parlamento. O caos e o terror que todo país sofreu por 6 horas foram causados somente para satisfazer os interesses de uma pessoa. o Yoon abusou do poder concedido pelo povo.
Além dos motivos escondidos do Yoon, a lei marcial declarada por ele possui os fatores ilegais e inconstitucionais que podem provar que este caso foi uma tentativa de golpe. O primeiro é que as justificativas da lei marcial declarada por ele não satisfazem os requisitos da lei marcial. No pronunciamento da terça-feira(03), ele insistiu que a Coreia estava sendo ameaçada pelas atividades autoritárias do parlamento onde o partido oposto tem maioria. Mas as atividades do parlamento, que o Yoon definiu como “autoritárias”, não podem ser consideradas como uma ameaça que possa causar guerra ou ausência de ordem pública, que são os requisitos para declarar a lei marcial. A fala do Yoon é somente retórica política.
O segundo é que, embora os requisitos da lei marcial sejam legais e constitucionais, ela não pode proibir a função do parlamento. Mesmo no estado da lei marcial, o parlamento tem liberdade de fazer atividades políticas para enfrentar medidas ilegais e inconstitucionais. Contudo, todas as atividades políticas foram proibidas pelo decreto oficial do comando da lei marcial e a Assembléia foi fechada pelas forças armadas. O terceiro é que há ambiguidade no processo para declarar a lei marcial. O processo é o seguinte: 1) ser aprovado no Conselho de Ministros, 2) avisar a razão, o tipo, a data e a área da lei marcial e o comando e 3) avisar para o parlamento imediatamente. Primeiramente, ainda não é afirmado se houve o Conselho de Ministros e, se houvesse, que discussão foi realizada nele. E o aviso não foi suficiente. No pronunciamento do presidente, faltou de tipo da lei marcial (se fosse extraordinária ou de precaução), de onde seja a área influenciada e de quem seja o comando. Por último, não houve o aviso para o parlamento.
Então, mesmo com os fatores ilegais e inconstitucionais, porque o presidente decidiu impor a lei marcial? Para entender essa questão, é preciso destacar a situação política do governo Yoon. Ele começou a ser conhecido nacionalmente em 2016 pelo promotor da investigação de corrupção da presidenta, Park Guen hye, e da amiga dela, Choi Soon Sil, que tinha grande influência no governo dela mesmo sem cargo público. A investigação levou ao seu impeachment e, com o sucesso dela, em 2019, ele foi nomeado para o procurador geral no próximo governo, Moon Jae In, que é do Partido Democrata. Mas no final de 2020, a ministra da Justiça do governo Moon, Choo Mi Ae, suspendeu o exercício do Yoon com a suspeita de contato inconveniente com as imprensas, investigação ilegal contra o ex-ministro da Justiça, Cho Guk, interferência de investigações e tais. Ele entrou com o processo de suspensão de eficácia de ato administrativo e foi absolvido em fevereiro de 2021. Em vez de voltar para o lugar, ele decidiu renunciar em março e entrou no mundo político em julho com o Partido do Poder Popular. Assim, ele passou a ser um dos mais influentes no Partido do Poder Popular e foi eleito na eleição presidencial de 2022 por uma margem de menos de 1% dos votos contra seu opositor, Lee Jae Myung.
A crise do governo Yoon começou com as eleições legislativas em abril de 2024. O partido do presidente, que era o segundo maior no parlamento, precisava da vitória nas eleições para fortalecer o poder do governo, mas o baixo índice de aprovação do governo resultou na vitória do Partido Democrata com maioria no parlamento. Desde então, o governo de Yoon entrou no estado do pato manco no seu terceiro ano de mandato e os democratas começaram dar um aperto no governo com os escândalos relacionados com a primeira-dama, Kim Kun Hee, como corrupção, tráfico de influência e manipulação de ações. No dia 15 de novembro, acusou-se uma pessoa importante para provar os escândalos dela e o presidente começou a enfrentar a exigência de impeachment. E 18 dias depois, ele declarou a lei marcial.
Um povo que esquece da sua história, é um povo que não tem futuro. Sendo fora de uma questão ideológica e política, várias figuras na história mundial destacaram a importância de ter a sua história em mente para não repetir os erros passados e para ir no caminho certo. A democracia da Coréia passou por um período miserável, sofrendo por quase 30 anos sob os regimes ditatoriais. Mas toda vez que a democracia do país foi ameaçada, o povo coreano saiu para rua e resistiu contra as ameaças. A revolução de 19 de abril foi frustrada pelo golpe de 16 de maio. Os movimentos dos cidadãos em Busan, Masan e Gwangju foram decepcionados pelas balas das forças militares. Mas o povo nunca perdeu a esperança e, finalmente em junho de 1987, retomou a democracia que tinha sido quebrada pelos ditadores.
Em dezembro de 2024, a democracia da Coreia do Sul foi ameaçada mais uma vez pela tentativa de golpe do presidente Yoon. De madrugada, mesmo com o frio, milhares de pessoas saíram às ruas de Seul immediatamente. Seja que for geração anterior que viveu o período dos regimes autoritários ou nova que aprendeu o período por professores, pais, livros e mídias, todos não esqueceram das tragédias passadas e da importância do sistema democrático. Na noite da terça e quarta, os coreanos defenderam a democracia do país como testemunhas da tentativa do golpe. Agora é a hora de investigar todos os acontecimentos duvidosos, punir envolvidos e complementar os ponto fracos no sistema da lei marcial para que esse caso nunca mais se repita.
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