O maior erro é a pressa antes do tempo e a lentidão ante a oportunidade
Provérbio popular árabe
1. A reorganização da esquerda brasileira é um processo que já se iniciou, mas se desenvolve muito lentamente. Será que estamos no alvorecer de um ciclo para além dos limites do lulismo? Há muitas variáveis indefinidas. As duas mais importantes são indissociáveis, e nos remetem ao centro do enigma: se a esquerda será capaz de derrotar a extrema-direita e, se nesse processo que vai passar pelas eleições de 2026, assistiremos a uma elevação da disposição de luta dos trabalhadores e da juventude. Esta são as duas questões centrais. O que a história nos ensina é que não há como abrir um ciclo superior ao lulismo sem a derrota do bolsonarismo, e sem um ascenso da luta de massas. Se o que prevalecer for uma derrota, continuaremos a ver as divisões, rachas e dispersão na esquerda. Será uma regressão, e teremos um intervalo histórico como foi depois de 1964, oxalá não tão grande. Militantes revolucionários devem manter confiança que, mais cedo do que tarde, os trabalhadores irão se levantar. Só que a abertura de um novo ciclo superior ao lulismo não pode repousar somente neste desfecho. A improvisação criativa embora tenha um lugar na luta política é perigosa. Há uma margem de inesperado, do súbito, brusco, repentino, mas é pequena. Aprendemos na dimensão explosiva de junho de 2013 que oportunidades se abrem e se perdem. O “objetivismo”, uma forma simplista de determinismo sociológico quietista, não é uma boa bússola. A força da consciência é aposta, vontade, projeto e programa. Marxismo é militância. Vai ser necessário abrir o caminho para novas ferramentas, tanto na esfera dos movimentos sociais, em especial o feminista e negro, quanto para a luta política, que exige um instrumento mais forte do que aqueles que temos hoje disponíveis.
2. O que a história nos ensina? Quando pensamos em perspectiva existiram, nos últimos cem anos, cinco ciclos na esquerda no Brasil: o anarco-sindicalista, o getulista, o comunista, o guerrilheiro e o petista/lulista. A passagem de cada um destes ciclos para o seguinte foi determinada por grandes mudanças objetivas no Brasil e no mundo, mas, também, intensas lutas político-ideológicas. As transições foram condicionadas por fases intermediárias, mais ou menos, complexas. As condições que favoreceram a afirmação do getulismo sobre o anarco-sindicalismo foram – simplificando – a vitória da revolução de trinta, o início da industrialização e a liderança de Vargas. O ciclo comunista se abriu pelo impacto da derrota do nazifascismo, o papel da URSS e a liderança de Prestes. O ciclo guerrilheiro se apoiou no impacto da revolução cubana, a onda de mobilização estudantil-operária de 1968, e o papel de Mariguella. O ciclo petista se apoiou nas lutas de massas da fase final de enfrentamento da ditadura, e o papel de Lula. Mas é bom ter sentido das proporções. O ciclo anarco-sindicalista foi menor que vinte anos. O getulismo foi hegemônico por uns trinta. Os comunistas colideraram por menos de quinze. As organizações da luta armada foram influentes por uns cinco anos. O lulismo tem supremacia na esquerda há quarenta anos. Todos que o subestimaram, erraram. Não é nem imortal, nem insuperável, mas é resiliente.
3. Quando pensamos em escala latino-americana as cinco forças mais importantes da esquerda são o chavismo, o lulismo, o kirchnerismo, o MAS boliviano, e a Frente Ampla uruguaia, herdeira de Mujica. O lulismo é um fenômeno distinto tanto do kirchnerismo- a última encarnação do peronismo- quanto do chavismo. Comparativamente, é mais forte que o kirchnerismo, e mais fraco que o chavismo. É mais forte que o peronismo por duas razões principais: (a) porque repousa na maioria dos movimentos sociais organizados, na maioria da intelectualidade de esquerda e, sobretudo, no PT, ainda um dos maiores partidos de esquerda do mundo; (b) porque Lula é uma liderança de esquerda com uma legitimidade popular superior a Cristina. Mas é, paradoxalmente, mais fraco que o chavismo pós morte de Chavez por duas razões centrais: (a) porque não liderou um processo revolucionário como foi a vitória sobre a tentativa de golpe de 2002; (b) porque não se apoia numa implantação nas Forças Armadas. O lulismo é, também, um fenômeno diferente, e muito mais enraizado na classe trabalhadora que o Morena de Cláudia Sheinbaum no Mexico, da Frente Ampla de Gabriel Boric no Chile, ou da coligação Pacto Histórico de Gustavo Petro na Colômbia. Mas o PT é muito mais homogêneo que a Frente Ampla uruguaia. O único partido que conquistou implantação social equivalente foi o MAS de Evo
Morales, mas as divisões internas irreversíveis da esquerda boliviana o condenaram.
4. O ciclo petista foi o mais forte e, de longe, o mais longo de nossa história. A esquerda nunca teve tanta influência e conquistou raízes sociais tão sólidas no passado. Previsivelmente, a sua superação vai ser muito mais difícil que as passagens anteriores. Terá como condição um cenário de ascenso colossal, de rupturas do PT e PCdB, a presença de sujeitos políticos coletivos, mas é possível. Entre outras razões porque o petismo se transformou em lulismo e, se esse é o seu ponto forte é, também, sua fraqueza. As pesquisas disponíveis em série longa indicam dinâmicas claras. O lulismo tem prazo de validade. Por quê? (a) porque depende de uma relação de confiança pessoal entre os mais pobres; (b) porque o PT não conseguiu preservar a influência majoritária entre as camadas médias de trabalhadores “remediados”; (c) porque a experiência das massas com a estratégia lulista de reformismo “fraco” não é suficiente para vencer a “guerra” ideológica pela consciência. A dependência do PT diante de Lula passou a ser absoluta. Um lulismo sem Lula, dificilmente, terá longevidade porque não surgiu nenhuma liderança substituta com a mesma autoridade. O PT sem Lula é um aparelho eleitoral acéfalo, e a tendência mais provável é uma irreversível decadência.
5. A reorganização da esquerda dependerá do desfecho da luta contra o bolsonarismo. Em outro nível de análise estará condicionada pela evolução da situação internacional, em especial, da resistência à extrema-direita na Argentina contra Milei, e no mundo contra Trump. A vitória poderá ser a quente, se vier até 2026 uma onda de ascenso ou, estritamente, eleitoral. Se considerarmos um cenário de vitória “a frio” teremos, grosso modo, uma extensão de prazo de “validade” indefinido para o lulismo, porque o PT se coesiona na gestão do Estado. Se considerarmos um cenário de vitória “a quente” tudo se acelera, porque os limites do lulismo serão colocados em xeque por um nível de expectativas e cobranças muito mais elevado, mas os caminhos serão “exploratórios” porque as diferenciações internas ainda não “decantaram”. O que parece seguro é prever que a possibilidade de rupturas do PT favorecerá a construção de um novo instrumento de luta com unificações com parcelas da esquerda radical. Se considerarmos um cenário de derrota eleitoral, de inexorável desmoralização, o mais provável é que o pós-lulismo dependerá da “liberação de forças” através de uma crise explosiva por dentro do PT, de alguma maneira parecida com o desenlace da crise do PCB, depois da derrota de 1964, condicionada, provavelmente por um giro programático ainda mais moderado do aparelho, e rupturas de alas à esquerda. O futuro da esquerda será um processo de mediações entre o “velho” e o “novo”, em grande medida, apesar do lulismo, mas não necessariamente renegando a herança do lulismo.
6. O recente desfecho do PED do PT em 2025 confirmou um crescimento do peso da CNB (Construindo um Novo Brasil), e uma redução da influência das tendências de esquerda internas, além de uma vitória irrefutável de Edinho. A votação é desalentadora para aqueles que apostaram que o PT poderia cumprir um papel mais influente pressionando o governo para um giro à esquerda nos próximos doze meses. Deixou também desamparadas as correntes que compreendem a necessidade de disputa por um programa com uma inflexão anti-imperialista mais contundente diante da ofensiva dos EUA. Não que as expectativas fossem muito elevadas, porque ninguém melhor do que a esquerda do PT é consciente de que ocupam um espaço de resistência. Mas o tímido resultado da votação de Rui Falcão e Valter Pomar, mesmo quando somados com Romênio Pereira, sinaliza um isolamento na fronteira do irreversível, quase inconsolável.
7. A conclusão do PED é que, apesar da estarrecedora luta interna dentro da CNB, com críticas atrevidas sobre concentração de poderes na tesouraria, ameaça desmedida de disputa da presidência pelo Nordeste, e até acusações abusadas de Quaquá, a unidade da corrente lulista, dilacerada por grupos de interesse parlamentares e regionais, foi preservada. Nenhuma diferença, afinal, era irreconciliável. Por quê? Há três hipóteses. O desenlace dos números esclarece que não foi por receio de desempenho, se tivesse acontecido uma unidade das chapas de esquerda. A CNB mantém um domínio sobre o aparelho muito superior à sua hegemonia política. Tampouco foi porque exista um acordo estratégico sobre um projeto político para o Brasil. Não ocorreu uma discussão sobre programa. A terceira hipótese é que a unidade foi mantida, e Edinho teve uma eleição consagradora, porque Lula pediu.
8. O processo de disputa interno e até externo ao PT para a etapa pós-lulista está contido até às eleições de 2026 por três razões principais, embora haja outros fatores: (a) a primeira é de natureza objetiva – um fator se define como objetivo quando se impõe por si mesmo, e não há o que fazer – Lula será candidato à reeleição, e isso condiciona tudo; (b) a segunda é de tipo subjetivo, e se resume ao fato incontornável de que não há consenso dentro da CNB sobre qual deve ser o programa e quem deve ser o sucessor(a); (c) a terceira é que o sucessor será indicado por Lula, ainda que após muitas negociações e consultas.
9. Não é possível imaginar o futuro da reorganização sem o PSol. Só a existência do PSol, há vinte anos, nas terríveis condições da luta política na esquerda brasileira é uma façanha notável. O Psol tem sido uma trincheira de lutadores sociais abnegados, um espaço de acolhimento de socialistas das mais variadas tradições. A liberdade de tendências internas garante a expressão de todas as correntes em respeito à proporcionalidade. O PSol atrai uma parcela majoritária do ativismo jovem, sua militância nos locais de trabalho, de moradia, nos movimentos por moradia popular, no feminismo, na negritude e entre os LGBT’s é reconhecida pelo entusiasmo e dedicação. O PSol esteve na primeira linha das campanhas internacionalistas nas últimas duas décadas. O desafio de construir um partido de esquerda radical com presença institucional, legalmente viável, de tal forma que a visibilidade de um programa socialista possa se expressar foi uma aposta que exigiu coragem, determinação e muita esperança no futuro. Ficou provado que era possível a presença de uma esquerda exterior ao PT, ainda que minoritária. Nas duas maiores cidades brasileiras o PSol chegou ao segundo turno de eleições municipais, à frente do PT. Perdeu, mas perdeu eleições que o PT também perderia. O PSol não é imune às mesmas pressões de toda a esquerda. Sofre com o eleitoralismo, sindicalismo, aparelhismo e burocratismo. Não é o partido revolucionário imaginário idealizado por uma parcela da vanguarda. Sim, o Psol é muito imperfeito, mas não está petrificado e estéril, é uma organização útil. Diante do peso, às vezes, esmagador do PT, tem sido um ponto de apoio para a militância mais lúcida que resiste à ideia que a única forma de lutar pela revolução brasileira é o recuo para um projeto político de “museu”.
10. Tanto o campo lulista quanto a esquerda ultrarradical compartilham a visão de que o PSol teria todos defeitos do PT, mas não a qualidade principal que é o apoio ainda majoritário no povo de esquerda. Em outras palavras, é o partido com mais influência eleitoral. Na versão mais “marxista” o PT é o partido de esquerda que tem mais confiança na classe trabalhadora. Quanto aos defeitos eles podem ser sintetizados como três pecados “originais”: (a) seria um partido de parlamentares; (b) seria um partido frente de correntes sem capacidade de centralização; (c) seria um partido reformista. São três meias-verdades. Uma meia-verdade é uma mentira inteira, uma simplificação. O Psol é muito imperfeito, evidentemente. Mas esta avaliação ligeira não é nem correta, nem justa. O PSol não é somente um aparelho eleitoral: seu papel militante foi indispensável nas recentes mobilizações da campanha Sem Anistia em março, e na organização dos Atos de julho pela taxação dos super-ricos, por exemplo. Não é honesto diminuir que uma parcela da militância mais combativa nos movimentos de mulheres e negros, populares de habitação e LGBT’s, ambientais, indígenas e culturais apoia o PSol. O PSol, apesar de heterogêneo e com dois campos internos, maioria e minoria, manteve uma notável capacidade de intervenção unificada ao longo dos últimos vinte anos, ainda que com altos e baixos. Por último, a “régua” para definir quem é e quem não é revolucionário não existe. A rigor, há duas posições extremas, mas insatisfatórias: (a) ou revolucionários são todos os que defendem a necessidade de uma revolução; (b) ou trata-se somente de quem liderou uma revolução. Evidentemente, a primeira é muito ampla e a segunda muito estreita. Embora seja um partido eleitoral o PSol organiza uma parcela muito importante, senão a maioria dos revolucionários na esquerda.