Após três semanas do início do novo mandato de Donald Trump, a distopia toma forma. O republicano e seus associados atualizaram a estratégia de “cada mergulho um flash”. A avalanche de medidas, decretos e declarações, típica do extremismo de direita ao redor do mundo, atordoa a oposição, confunde a sociedade e obriga os meios de comunicação e os analistas políticos a um exercício diá­rio, cansativo e inútil de debates, enquanto os reais interesses passam ao largo. Trump anunciou uma cruzada contra o mundo e em particular com a China. Vai funcionar?

O professor e analista de Relações Internacionais da FGV Oliver Stuenkel, em uma postagem na rede X, define o estilo discursivo de Trump. O presidente dos EUA produz metodicamente notícias bombásticas que pautam a agenda política. “Essa estratégia, conhecida como flooding the zone (‘inundando a área’), busca desorientar e atordoar a oposição e a mídia, dificultando a construção de uma resposta eficaz.”

O republicano ameaça anexar territórios estrangeiros, como fez ao sugerir a incorporação do Canadá, a tomada do Canal do Panamá, a anexação do território dinamarquês da Groenlândia ou a ocupação, após uma limpeza étnica, da Faixa de Gaza. Tais declarações provocam uma previsível onda de indignação, o que resulta em uma dificuldade de diferenciar notícias relevantes de manobras diárias de distração. “A ideia de anexar o Canadá, por exemplo, é chocante, mas extremamente improvável de se concretizar”, anota Stuenkel.

O republicano adota o tom de ameaça como barganha

O esforço de compreensão às vezes parece inviável pelo rolo compressor de ordens executivas, para não falarmos das declarações, que Trump emite desde o retorno à Casa Branca. Mas, se olharmos para dois fenômenos – a guerra de tarifas e a interrupção da ajuda externa –, percebemos uma certa ordem e previsibilidade nas ações. Vejamos:

Guerra das tarifas

Em 1º de fevereiro, o republicano emitiu a ordem executiva “Impondo taxas para lidar com a situação na fronteira Sul”, que cria uma tarifa de 25% sobre produtos oriundos do México sob a justificativa de que “o fluxo sustentado de imigrantes ilegais e opioides ilícitos e outras drogas” inundavam os EUA por culpa do governo vizinho. Com a ordem “Impondo taxas para lidar com o fluxo de drogas ilícitas por meio de nossa fronteira Norte”, ele fez o mesmo com o Canadá, excluído o componente da “imigração ilegal”.

No mesmo dia, sob a ordem “Impondo taxas para lidar com a cadeia de oferta de opioide sintético na República Popular da China”, estabeleceu uma taxa de 10% sobre produtos chineses. Nesse caso, Trump acusa o Partido Comunista Chinês de subsidiar e incentivar “companhias químicas a exportar fentanil (…) usados na produção de opioides sintéticos vendidos ilicitamente nos Estados Unidos”.

As tarifas tornaram-se, na verdade, uma barganha para pressionar os países-alvo. A presidente mexicana, ­Claudia Sheinbaum, prontificou-se a alocar 10 mil oficiais da Guarda Nacional para controlar a fronteira e conter a migração, receber imigrantes expulsos dos EUA e combater o tráfico. O Canadá prometeu reforçar as divisas com aparato militar, e anunciou a criação do posto de “czar do fentanil” para combater o comércio de opioides. Na terça-feira 11, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, nomeou Kevin Brosseau, ex-assessor de inteligência, para o cargo. No dia 3, dois dias depois de impor as taxas, Trump emitiu ordens cancelando temporariamente a decisão original por 30 dias diante dos acenos de ambos os governos.

A China, ao contrário, retaliou e impôs tarifas sobre produtos estadunidenses: 15% sobre carvão e gás natural liquefeito e 10% sobre petróleo cru e equipamentos agrícolas. Além disso, o regulador de mercado do governo local anunciou a abertura de uma investigação antimonopólio contra o Google.

Desmonte. A USAID provavelmente será reformulada. E Trump vê uma janela de negócio no drama de Gaza – Imagem: iStockphoto, Bashar Taleb/AFP e Sgt. Agustin Montanez

Trump vai levar adiante a guerra de tarifas basicamente por duas razões: aumentar a receita e colocar países – aliados e inimigos – na linha. Depois do embate no início de fevereiro, na terça 11 a Casa Branca emitiu a ordem “Ajustando importação de aço para os Estados Unidos”, sobretaxando em 25% as importações da commodity e de alumínio. O imposto incide de forma geral, mas afeta os maiores exportadores, Canadá, Brasil e México, além de alvejar indiretamente Pequim. A ordem nominalmente citava “o aumento de investimento chinês no México, guiado por imensos subsídios e a habilidade contínua de explorar brechas na política comercial dos EUA”.

Ante a guerra tarifária trumpista, o economista e consultor independente Francisco Faria Pessoa elaborou um índice para medir a “Trump-dependência dos países”, ou seja, o quanto estão vulneráveis às políticas da Casa Branca. “As formas de intervenção são múltiplas, desde a geopolítica, com o uso de força militar, até a econômica, que pode adquirir várias facetas. Há o endividamento, a dependência no campo de atividades produtivas ou as transferências unilaterais, como o caso da ajuda internacional sem contrapartidas.”

Pessoa criou o indicador “Corrente de comércio de bens com os EUA/PIB”, que leva em conta o conjunto exportação (indica demandas por produto) e importação (mede o impacto sobre o preço do país na relação com os EUA) sobre o PIB. “Isso não dá conta de todas as variáveis, como o poder de lobby de setores da economia, mas incentiva o início de uma reflexão.”  No indicador, o México é o país mais dependente, com índice 40,7. O Canadá, o terceiro, com 33,45 (atrás, surpreendentemente, da Nicarágua). A China estaria na posição 57, com índice 4, ou seja, pouco dependente. Mesmo o Brasil teria um espaço de barganha a partir das variáveis propostas, em 62º, com índice 3,57.

Limites à assistência internacional

Em 20 de janeiro, primeiro dia de governo, Trump emitiu a ordem “Reavaliando e Realinhando a Assistência Externa dos EUA”. A justificativa dada foi de que “a indústria de ajuda estrangeira dos Estados Unidos não está alinhada com os interesses americanos (sic) e em muitos casos é antitética aos valores americanos”. Trump instituiu um período de 90 dias, até 20 de abril, e interrompeu novas obrigações de pagamentos ou a criação de organizações não governamentais até a conclusão de uma revisão da eficiência e consistência dos programas da agência. O site PewResearch registra: no ano fiscal de 2023, o orçamento total de assistência somou 71,3 bilhões de dólares, dos quais 43,8 bilhões foram repassados por meio da Usaid. Naquele ano, cerca de 16 bilhões foram enviados à Ucrânia.

Segundo o pesquisador Jamey Essex, autor de Development, Security, and Aid: Geopolitics and Geoeconomics at the US Agency for International Development, como os EUA são o maior fornecedor mundial de assistência financeira e humanitária, o corte, mesmo restrito aos 90 dias do período de escrutínio, significará o aumento da insegurança alimentar em várias partes do globo e um desarranjo perigoso de programas de desenvolvimento agrícola ou de direitos das mulheres.

Há, no entanto, quem aponte o caráter político estratégico imperial da agência. “Os defensores da Usaid afirmam que ela permite aos EUA exercer o seu softpower, uma forma relativamente barata de barrar a presença ou a influência de Estados rivais, movimentos políticos de oposição ou, de forma mais geral, os tipos de imprevisibilidade e estagnação econômica resultantes da pobreza.”

Camila Vidal, professora de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do INCT–Ineu, define a Usaid como um instrumento de intervenção: “Não existe uma única agência ou instituição governamental nos EUA que seja efetivamente altruísta. Todas, inclusive a Usaid, servem aos interesses nacionais, ou seja, aos interesses materiais e simbólicos de uma classe dominante nos EUA. Assistência humanitária é essa luva de veludo em um punho de ferro, uma analogia de James Petras, que justifica a atuação norte-americana em outros paí­ses para atender a interesses materiais, de maiores lucros e abertura de mercado a grandes empresas”.

No fundo, o objetivo é tentar conter o avanço econômico e geopolítico da China

A professora cita como evidência a atuação da Usaid no Chile, no fim dos anos 1970: “Durante o governo Allende, a agência não aumentou o valor alocado, mesmo com o caos que o país vivia com a greve dos caminhoneiros, momento em que faltavam alimentos básicos. Menos de um mês depois do golpe, aprovou para o governo Pinochet um crédito oito vezes maior do que em todo o período Allende”.

Mas se a Usaid serve de forma eficiente a essa face interventora, o que explicaria o esforço de desmontá-la? Para Vidal, a ordem executiva cumpre a promessa do republicano de diminuir o gasto externo e usar o dinheiro para “fazer a América grande de novo”. A professora cita, no entanto, a agenda ideológica de ataque a direitos de gênero e sexua­lidade. “Ainda que a Usaid tenha sido historicamente uma agência bipartidária, recentemente vem sendo caracterizada como uma instituição que abarca em seus editais questões priorizando gênero e raça.” Dar fim a políticas afirmativas vai ocorrer em todas as esferas do governo, sob a ordem “Acabando com Programas e Preferências DEI (diversidade, equidades, inclusão) radicais e ineficientes”, de 20 de janeiro.

A ideia de interferência na Usaid foi descrita no Projeto 2025 – Um ­Mandato de Liderança – Uma Promessa ­Conservadora, publicação do think tank Heritage ­Foundation. No documento, Max Primorac, integrante da fundação e ex-chefe de operações da Usaid, defende um alinhamento e coordenação dos “incontáveis programas de assistência por todo o governo dos EUA” e a implementação de “uma agenda do próximo presidente conservador de forma mais efetiva”. Havia um alvo explícito na elaboração do documento. Um dos objetivos da próxima administração deveria ser “financiar programas para contrapor esforços específicos chineses em países importantes estrategicamente e eliminar financiamento a qualquer parceiro que se engaje com entidades chinesas direta ou indiretamente”.

Portanto, apesar das bravatas do “copresidente” Elon Musk, que não esconde o desejo de acabar com a agência de uma vez por todas, a Usaid tende a ser reformulada sob a ótica trumpista. Reacionária (ainda mais) e anti-China.  •

Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um mergulho, um flash’

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Last Update: 13/02/2025