“Certo dos sentimentos que vos animam e a vossos constituintes, julgaria faltar ao que de mim esperais, se deixasse de congratular-me convosco e com toda a província por tão plausíveis motivos, antes de começar a triste exposição dos males que nos afligem.” Assim é o início de um romance brasileiro contemporâneo: Guerra – I: Ofensiva Paraguaia e Reação Aliada Novembro de 1864 a Março de 1866, de Beatriz Bracher.

O leitor haverá de estranhar a linguagem com o tempo verbal na segunda pessoa do plural. Estranhará também o gênero masculino logo na primeira palavra, em discordância com a autoria feminina. E estranhará ainda mais a existência de uma província, subdivisão administrativa que no Brasil ficou para trás com o Segundo Reinado, dando lugar aos estados de hoje.

Mas o leitor, inteligente, vai logo respirar fundo e seguir a leitura, porque sabe que a linguagem de ficção deve mesmo chacoalhar os lugares-comuns por meio de estranhamento, que a voz narrativa não precisa ter o gênero da pessoa que a põe no papel e que um texto atual pode emular um antigo.

Daí o leitor perceberá que esse discurso é creditado a Augusto Leverger, presidente da província de Mato Grosso de 1865 a 1870. E que todo o texto que o segue é composto de fragmentos escritos por 112 autores, todos eles homens do passado. São combatentes, generais, capitães, cadetes, alferes, voluntários da pátria, médicos e políticos que participaram, de alguma forma, da Guerra do Paraguai.

Guerra – I: Ofensiva Paraguaia e Reação Aliada Novembro de 1864 a Março de 1866. Beatriz Bracher. Editora 34 (536 págs., 119 reais) – Compre na Amazon

Beatriz Bracher conseguiu a façanha de orquestrar essa centena de vozes para compor uma sinfonia que reproduz o som grotesco, ainda que harmônico, da guerra. Com a leitura do romance, menos entendemos de fato a guerra e mais a escutamos, com homens em delírio, brigando não se sabe muito bem pelo quê, morrendo e matando, adoecendo, temendo, se encorajando, se perdendo em pensamentos. E quem rege esse bando de homens é uma mulher.

Mas, e ela? Quem é Beatriz Bracher, que abdicou das próprias palavras para copiar e colar as palavras de outrem coletadas em livros velhos, empoeirados, furados de traças no fundo de sebos e bibliotecas?

Em muitas das resenhas sobre Guerra – I menciona-se que ela é filha de um banqueiro. Beatriz recebeu ­CartaCapital em seu escritório, numa vila na Zona Oeste de São Paulo, e respondeu quais são, afinal, as vantagens e desvantagens de ter tido como pai ­Fernão Bracher (1935–2019), ex-presidente do Banco Central no governo Sarney.

“A vantagem”, começa ela, como se estivesse preparada para a pergunta, “é que a riqueza que um cargo como esse proporciona à família me deu acesso a boas escolas, bom ensino superior, muitos livros e cultura de modo geral. Pude viajar, conhecer outros jeitos de viver.”

E continua: “Outra coisa é que um banqueiro precisa saber de vários assuntos, porque, por exemplo, se vai emprestar dinheiro para uma empresa, tem de saber onde está se metendo. Acho que esse conhecimento amplo acabou sendo transmitido para mim”.

Escavação histórica. Os fragmentos escritos por 112 homens que participaram da Guerra do Paraguai são reveladores de um novo-velho Brasil – Imagem: Renato Parada

Mas há também, segundo ela, desvantagens. Se, por um lado, acessou um universo vasto, por outro nunca pôde transitar num mundo igualmente vasto, mas diferente. Lugares que milhões de ­pessoas habitam cotidianamente, como as favelas, não foram ambientes que Beatriz Bracher frequentou. E essa ausência pode desfalcar uma escritora, dependendo do que se pretende escrever.

“Outro ponto negativo: muita gente já me chamou de perua, pensam que uma pessoa rica vai ser o quê, senão uma perua. Quando, depois de anos, resolvi sair da Editora 34, que tinha fundado com outros sócios, um deles, que também saiu, disse que eu tinha cansado de brincar. Existe a noção de que se você tem dinheiro e trabalha, o trabalho para você é só um brinquedo”, conclui.

Além da 34, editora de qualidade reconhecida por ter no catálogo títulos importantíssimos da literatura, Beatriz Bracher criou, com o pai e Marta Garcia, outra casa editorial, a Chão.

A Chão publica livros de história basea­dos em memórias, diários, cartas, obras literárias e manuscritos que caíam no esquecimento e que, na edição, surgem acrescidos de contextualização e análises feitas por pesquisadores. Guerra Contra Palmares, por exemplo, traz um manuscrito de 1678 feito para louvar o governador de Pernambuco, mas que se tornou um documento da história do assentamento de escravos fugitivos liderado por Zumbi.

Para os que pensaram estar Beatriz Bracher de brincadeira, a contribuição que a Editora Chão oferece ao Brasil, ajudando a construir uma memória coletiva mais completa, deveria bastar para que se convencessem do contrário

Guerra – I quase poderia se encaixar no catálogo da Chão, embora careça do rigor historiográfico, do material auxiliar, explicativo etc. E a autora, de fato, discerniu que este excêntrico romance é mesmo um romance e não um livro de história.

Entre os 112 homens que compõem o livro, um recorrente é André Rebouças, intelectual negro nascido na Bahia, que dá nome a um túnel do Rio de Janeiro e a uma avenida de São Paulo. No início de 1866, em guerra, estava na Argentina, perto da fronteira com o Paraguai, e assim descreveu a precariedade da situação:

“É tal a escassez de utensílios para cortar mato, cavar terra etc., que só o Batalhão de Engenheiros possui alguns já muito deteriorados pelos trabalhos na longa viagem de Concórdia a Corrientes. Sempre que qualquer divisão tem necessidade de pás, enxadas, manda pedi-las de empréstimo ao Batalhão de Engenheiros. Não foi mais feliz o general Andréa nas suas reclamações sobre o fornecimento de dietas para o Hospital Ambulante: todos os dias nas partes dos médicos da primeira divisão se lê: ‘Não foram enviadas pelo fornecedor as dietas pedidas para os doentes’”.

A Chão lançou, em março, O Engenheiro Abolicionista, 2, segundo volume dos diários de Rebouças. O trabalho de ­Bracher parece ser apenas um, embora possa ter várias frentes e formas: recuperar o que pode do Brasil. Para isso se vale de sua posição social.

“Existe a noção de que, se você tem dinheiro e trabalha, o trabalho para você é só um brinquedo”, diz a autora, filha de um banqueiro

Há um conto exemplar escrito por ela, intitulado Ficção, no livro Meu Amor (Editora 34, 2009). A narradora, uma mulher rica, está em seu carro blindado, parada num engarrafamento. Tudo muito rápido, vem um assaltante armado e começa a bater com a arma na janela. O tempo desacelera tanto quanto cresce a observação da narradora aos detalhes. Sabendo que sua proteção está garantida, sente-se tranquila. Até que se dá conta de que é o seu dia no rodízio de placas e não está no carro blindado. O conto termina em violência. A perspectiva não é desprezível por ser de uma mulher rica. Ela, ao contrário, contribui para a representação dos acontecimentos da vida no País.

Voltando ao Guerra – I. Questionada sobre qual seu escritor preferido dentre aqueles todos, Bracher responde ser ­Alfredo Taunay. Escreve ele no livro dela: “Outro passatempo meu no melancólico e penoso acampamento do Coxim, à margem direita do largo e límpido Taquari, consistia em seguir e observar de perto o curiosíssimo trabalho do formica leo, inseto sobremaneira frequente naquelas paragens”.

Com o trecho, entende-se a preferência. No meio de uma guerra sangrenta, violenta, precária, Taunay confessa a peculiaridade de voltar a atenção à pequenez de uma formiga-leão. Como sua narradora que no meio de um assalto se demora nos detalhes da arma, da coloração da língua que a xinga, Beatriz Bracher parece gostar dos pormenores, de trechinhos de diá­rios, dos documentos esquecidos, de tudo isso que, individualmente minúsculo, tem a capacidade de fazer um país crescer.

Guerra – I é o primeiro volume de uma trilogia que cobre todo o período da Guerra do Paraguai e, seis meses após o lançamento, acaba de receber nova impressão. O segundo volume será lançado ainda este ano e o terceiro, em 2026. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um inseto na guerra’

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Last Update: 24/04/2025