Aposentado, por que não morres?, por Luís Felipe Miguel
O “mercado” está preocupado com o “rombo da Previdência”, que pode “prejudicar o cumprimento do arcabouço fiscal”.
O problema, dizem, é a política de valorização do salário mínimo no governo Lula.
Simone Tebet defende a desvinculação entre a aposentadoria e o salário mínimo. Arthur Lira quer colocar o assunto em pauta depois das eleições.
É algo não apenas desumano como burro. O vencimento dos aposentados é o motor da economia em muitos municípios brasileiros. Achatá-lo significa deprimir o mercado interno, quebrar comércios, reduzir empregos – além, é claro, do detalhe que é jogar milhões de pessoas na mais absoluta carência.
A reforma da Previdência é um tema permanente da agenda política brasileira. Nunca na intenção de tornar o sistema mais justo ou melhorar a situação dos pensionistas.
O objetivo é sempre obrigar o trabalhador a contribuir com uma parcela maior do seu salário, se aposentar mais tarde e receber um benefício mais minguado.
Nunca se pensa em apertar o cerco sobre a sonegação, ampliar a formalização do trabalho, taxar os ricos. Sempre é ferro na classe trabalhadora.
Sem falar que as contas do tal rombo são contestadas por muitos economistas sérios. No debate público, porém, qualquer dúvida é interditada e o déficit da previdência tem que ser tratado como dogma.
Lula, no primeiro mandato, bombardeou o regime previdenciário dos servidores públicos. O discurso já era o de sempre: direitos não devem ser estendidos para quem não usufrui deles, mas rotulados como “privilégios” e extintos.
Com Bolsonaro, aprovou-se (e aprofundou-se) a reforma desenhada por Temer, que exige mais tempo de contribuição e idade mais avançada para que o trabalhador se aposente.
A precarização do trabalho servia para o enquadramento da aposentadoria como privilégio. O autônomo, sempre levado a ver a si mesmo como “empreendedor”, aceitava que nunca desfrutaria desse direito e canalizava sua frustração para os empregados com carteira assinada.
A previdência, cumpre lembrar, é um instrumento de justiça social, antes de ser um problema contábil.
Para o capital, a aposentadoria é o descarte de uma mão de obra inservível. Se ainda tem condições de produzir, quanto mais de se divertir, deve estar a serviço do capital, seja trabalhando, seja no exército de reserva. Só quando perde essas condições tem direito ao “descanso” – já que os preconceitos do nosso tempo impedem soluções mais econômicas e elegantes, tipo praticar eutanásia em todo mundo. Mas que seja pelo menor tempo e pelo menor custo possíveis.
Mas, para o trabalhador, a aposentadoria é uma espécie de alforria. É o momento em que ele pode alcançar um pouco da liberdade existencial de que o burguês desfruta, perseguindo seus próprios projetos de vida. Para isso, é preciso que tenha duas coisas: alguma tranquilidade material e suficiente saúde.
Empurrar a aposentadoria para a velhice avançada, em que o trabalhador já está com um pé na decrepitude, ou negar um rendimento que seja capaz de sustentá-lo são maneiras de negar essa possibilidade.
A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, já disse que o partido não vai apoiar nada disso. O presidente Lula também se manifestou várias vezes em forte oposição à desvinculação dos benefícios.
Mas a gente sabe que a Faria Lima tem força dentro do governo, especialmente na área econômica. É preciso estar atento.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
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