Por uma esquerda festiva. Axé, Kamala!

por Luana Silva

Quando, em uma tarde de domingo, soube que Biden havia desistido da candidatura, dei um berro de alegria. Suas chances de vitória eram pequenas e aquele ato parecia um golpe de mestre. Agora, o assunto deixaria de ser o esparadrapo na orelha de Trump e passaria a ser a nova candidatura democrata.

Com sua renúncia, a democracia na América, sempre trôpega, ganha um novo fôlego pra se reerguer e continuar a andar. É unanimidade entre os progressistas que a vitória do Trump-MAGA seria uma catástrofe para a América e o mundo. Então por que diabos a gente não pode comemorar a renúncia de uma candidatura que já nasceu morta e celebrar uma possível derrota da extrema-direita?

Porque a Kamala Harris é uma mulher negra. Ponto. E, consequentemente, não é obrigada a ser anticapitalista, revolucionária, anti-imperialista e pacifista. A cor da pele não traz acoplada a consciência de raça, classe, gênero, especismo, capacitismo e demais opressões. Exigir qualquer um desses atributos de uma pessoa negra (seja homem ou mulher) é simplesmente racismo. Ou alguém já viu algum branco ser cobrado para ter consciência política por causa do seu tom de pele?! 

Sonho com o dia em que viveremos em uma nova sociedade. A realidade, porém, é a que em 2024, a cadela do fascismo não está nem no cio. Pariu Bolsonaros, Trumps e Mileis cuidadosamente alimentados por Musks e Zuckbergs da vida. Conjecturas sobre a eleição de candidatos nanicos revolucionários não nos levarão, por ora, a lugar algum. 

Mas reconhecer e se alegrar com a frestinha na porta que se abre, com a possibilidade da derrota de Trump, é importante. Nos ajuda a seguir em frente. Ninguém se movimenta por um mundo melhor movido por tristeza, e sim por alegria. Por isso, acho que seria interessante festejarmos de quando em quando nossas pequenas conquistas. Com Biden, a vitória de Trump era praticamente certa. Não é possível que a esquerda seja tão ranzinza que não possa comemorar um cadinho de avanço por ao menos um dia.

Kamala Harris é uma punitivista estadunidense que chegou à política graças ao populismo penal americano. E daí?! Todas as vezes, sem exceção, que vejo uma mulher negra numa posição de poder eu fico muito feliz por sua vitória. Ela, na minha opinião, está no lado errado da luta e da história?! Com certeza. As prisões são os navios negreiros da humanidade e todo preso é um preso político. Mas também tenho certeza das inúmeras batalhas internas que essa mulher teve para se levantar e trabalhar todos os dias. Também tenho certeza de que bem ou mal, teve de se reconhecer como negra, teve de trabalhar dobrado, teve de vencer o racismo internalizado, teve de lidar com incontáveis assédios e racismos (sutis ou escancarados).

Por fim, caso seja eleita numa onda feminista negra em uma das sociedades mais racistas do mundo, apesar de todos os pesares, acho que ao menos por alguns segundos, deveríamos comemorar e olhar a situação com alegria. A alegria de que a nossa força faz a diferença e de que continuaremos lutando. E a alegria de que a vitória da democracia nos Estados Unidos, México, Bolívia, Venezuela, Inglaterra ou França, também é a nossa vitória. Como bem disse Mélenchon há duas semanas atrás, as esquerdas do mundo vão olhar pra nós e irão se inspirar. De fato, meu caro insubmisso. Sou uma mulher negra de pele marrom, nascida e criada em Aracaju, mas também fiquei muito feliz e inspirada com sua vitória. Com a alegria dos pequenos passos, ganhamos mais força para nossa longa jornada revolucionária. Por isso, assim como a jornalista Cynara Menezes, faço coro aos que desejam muito axé pra Kamala. 

Notas chatas para possíveis chatos e chatas de galochas:

1- Citei só o massacre apoiado por Harris ao seu próprio povo, mas obviamente ela também apoia o genocídio obsceno e horroroso dos palestinos e isso é indefensável. Assim como tantos outros. Espero apenas que a critiquem com a mesma intensidade que criticariam um branco. Nem mais, nem menos.

2- Mélenchon e a França Insubmissa-Frente Popular são um caso à parte, pois não venceu o menos pior. Os progressistas venceram. Cada um dos países citados obviamente têm uma história única.

3- A fortuna é o que me faz apoiar Harris. Trata-se de uma estratégia de ocasião. Hoje nos movimentamos e resistimos o inimigo chamado extrema-direita. Amanhã, um dia depois da eleição de Harris, continuamos a caminhada por um dia realmente florido. No Brasil, a maioria das mulheres negras votaram em Lula. Na França, uma das palavras de ordem que movimentou a Frente Popular de Mélenchon foi a de que “a França não é um país de racistas”. Se Harris ganhar, as mulheres negras mais uma vez serão decisivas. Ou seja, nossa força é indubitável.

4- Certa feita perguntaram ao ex-ministro, atual chefe da Assessoria Especial da Presidência da República, Celso Amorim, a diferença entre os democratas e republicanos. O ex-ministro sabiamente respondeu que se tratava apenas de algumas nuances, porém essas nuances são capazes de salvar vidas.


Luana Silva é advogada, esp. em Direito Penal c/c Criminologia Crítica e doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe. Parte de sua pesquisa foi realizada na Universidade de Westminster/Londres, onde esteve como pesquisadora visitante.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 12/08/2024