Há anos, bons anos, a agência na qual eu trabalhava e que se chamava Giacometti, realizou uma pesquisa profunda sobre o tema longevidade e concluiu que o homem que viveria 150 anos já havia nascido.

Eu, diretor criativo, fiquei encarregado de fazer o anúncio, a peça publicitária. O título dizia: “A boa notícia: Em breve viveremos mais de 100 anos. A má notícia: Em breve viveremos mais de 100 anos”.

Para me explicar peço que imaginem uma comédia.

A praça em frente ao palácio de um governo, lotada, aguarda o pronunciamento do grande líder e sua equipe de notáveis. Alguns reclamam da demora. Outros, do preço da água. Um incauto pergunta quem será o cantor que vai apresentar-se – uma chance de ouro para um malandro explicar que Roberto Carlos chegaria em breve dentro de um navio, que desceria do céu com uma centena de dançarinas e músicos. O incauto encantou-se e chegou a derramar uma furtiva lágrima.

Rufar de tambores, clarins perfilados e eis que surge o grande líder e sua enorme comitiva. Aplausos e mais aplausos e ele começa.

— Vamos falar sobre longevidade! Foram anos, décadas e milhares de estudos e pesquisas para…

— Para concluir que o segredo da longevidade é viver simplesmente.

A plateia ri e na carona engrossa o coro.

— Não só viver simplesmente. Cada semana é uma novidade.

— Tem de fazer exercícios físicos. Tudo melhora, menos o humor e a vontade de voltar pra academia.

— Subir escada. 50 degraus por dia e a gente ganha mais dez minutos de vida.

— Aeróbica com exercícios físicos. No mínimo, uma vida feliz por mais duas semanas.

— Vitamina D

— Há controvérsia.

— Zinco.

— O zinco caiu no ostracismo depois da pandemia.

— Eu ainda tomo álcool em gel com ­duas gotas de Angostura.

— Experimenta trocar a Angostura por Campari.

— Se misturar com ora-pro-nóbis?

— Nem fale! Você vai viver mais uma meia hora, fácil, fácil!

O riso tomou conta da multidão até o grande líder erguer a voz

— EU POSSO FALAR?

As risadinhas foram diminuindo e o silêncio se estabeleceu.

Vieram então os gráficos, um ­PowerPoint sem-fim com números, lâminas de microscópio, uma foto da netinha do grande líder, por engano, mas que arrancou dos presentes um sincero “AWN”.

O incauto cutucou o colega e voltou a perguntar sobre o Roberto Carlos.

— Já, já… Não sai daqui.

Por fim, com o rufar ainda maior de tambores, a conclusão foi apresentada em uma enorme frase:

EM BREVE VIVEREMOS MAIS DE CEM ANOS!!!

Fogos espoucaram, a banda local entrou com suas balizas, tocando uma versão para fanfarra da canção Deixa a Vida me Levar, do grande Zeca Pagodinho.

A plateia não resistiu e cantou junto.

Mas imagine o tamanho da dívida com 100 anos.

O incauto ficou confuso.

— Essa não é do Roberto, né?

Findo o show pirotécnico e musical, fez-se um silêncio sepulcral.

O grande líder mantinha seu sorriso nos lábios, assim como toda a sua comitiva. E certo de ter encantado a todos, não resistiu em perguntar.

— Não é uma notícia maravilhosa?

O silêncio foi quebrado. Aproximou-se do palco um senhor com seus 70 anos, ergueu a mão, disse que gostaria de dizer umas palavras e foi atendido.

— Sabem do que eu sinto saudade?

O grande líder arriscou seu palpite:

— Imagino que seja de seus dias de juventude, da aurora da sua vida que os anos não trazem mais, MAS… o milagre da ciência está lhe dando de presente muitos e muitos anos de uma nova vida, de uma nova aurora! Acertei?

— Errou em cheio. Eu sinto saudade do tempo que a gente vivia, no máximo, 60 anos.

Murmúrios muitos. E ele, ainda gozando de boas articulações, sobe ao palco, apanha o microfone e manda bala.

— Dava pra planejar. Dava pra guardar e usar na aposentadoria que vinha cedo. A gente não tinha grandes ambições. Era bom viver de um jeito simples. Nunca faltou nada lá em casa… até os 60.

— Isso aí é uma grande verdade. A coisa foi ficando esquisita pra gente que passou dos 70.

— Passou de 60 não tem mais trabalho.

— Nem respeito.

— Mas tem o consignado. Pergunta pra turma quem tá pendurado no consignado.

A multidão ergue a mão.

— Imagina o tamanho da dívida com 100 anos.

— Se a gente pudesse vender alguns órgãos em vida…

— Eu tenho vários que não uso mais.

— Mas que também não valem mais nada.

Bem-humorados, apesar dos declarados dissabores, riam.

— Alguma coisa errada aconteceu. Nem estou falando que aqui, nessa nossa cidade, país. No mundo a coisa toda azedou pro nosso lado.

Viver 100 anos pode ser um castigo cruel. Pra que serve um velho centenário?

— Antes servia pra matéria do Fantástico.

— Mas se todo mundo vai chegar lá…

— Matéria na TV Senado?

O próprio grande líder pôs-se a pensar. Questionou-se e por fim se manifestou.

— E se for uma bênção? E se a gente botasse fé numa transformação?

Corações e mentes. Clichezão, né? Mas vai que rola. Vai que a gente consegue viver o bastante pra ver tudo virar outra coisa.

Nesse momento, sem nenhuma explicação lógica, do alto desceu um gigantesco navio, com Roberto Carlos, dançarinas e uma orquestra.

E o Rei cantava: Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo.

O incauto e o malandro se abraçaram e cantaram junto, com todos.

Ou vocês imaginam outro final? •


*Publicitário e roteirista.

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vida longa?’

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Last Update: 26/12/2024