Já faz um tempo que o cinema de gênero ronda a filmografia de Karim Aïnouz. Em A Vida Invisível (2019), o diretor experimentou pela primeira vez o melodrama e, com ele, conquistou o prêmio da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes.
Em Motel Destino, que chega às salas brasileiras na quinta-feira 22, a aposta é no cinema noir. No entanto, a abordagem vista na tela subverte qualquer expectativa estabelecida por esse cânone.
O novo filme de Aïnouz é uma antítese dos suspenses policiais clássicos. Nele, o jogo de sombras provocado pelo uso do preto e branco e o forte mergulho psicológico nos protagonistas dão lugar a cores quentes e uma narrativa conduzida, acima de tudo, pelo desejo carnal. No cenário, saem as paisagens nórdicas e entra o vibrante litoral de Beberibe, praia cearense onde o diretor, na infância e na adolescência, costumava passar as férias com a família.
“Queria fazer um filme popular, em que os espectadores não dormissem”, diz, enfatizando sua vontade de extrapolar o cinema de nicho. “Tentei fazer um filme febril, com interpretações grandiosas, que flertam com o exagero. Motel Destino nasce do meu desejo de provar que dá para fazer um cinema com marca autoral que também seja comercial.”
A vontade de se comunicar de forma direta levou-o a fazer, em suas próprias palavras, seu trabalho “mais careta” no aspecto formal, com o andamento e os pontos de virada pregados pelos manuais de roteiro. A originalidade está no jeito de contar a história de personagens que, assim como em outras produções do diretor, são movidos por um turbilhão interno.
Quem guia a trama é o jovem Heraldo (Iago Xavier), foragido após perder o irmão em uma emboscada. Ele se refugia no motel que dá nome ao filme, conduzido pelo casal Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção), onde passa a executar serviços gerais em troca de abrigo e proteção. Dia após dia, embalado pelos gemidos dos clientes do lugar, o trio estabelece uma relação movida a tesão e tensão.
Órfão, sem família ou alguém a quem recorrer, Heraldo quer migrar para São Paulo em busca de seu lugar no mundo. Aprisionada no estabelecimento por conta do machismo do marido, Day sonha em ser livre. Com a cumplicidade de quem foi machucado pela vida, os dois iniciam um tórrido caso às escondidas de Elias.
O erotismo é, portanto, uma constante durante a projeção, o que gerou desconforto em parte da crítica de Cannes. “Isso é ultrajante. O elemento erótico é vital. A morte é que deveria ser incômoda”, diz o cineasta. Ele compara o encontro dos personagens à técnica japonesa de kintsugi, por meio da qual cerâmicas quebradas são recuperadas a partir da colagem de seus pedaços com ouro, realçando suas fissuras, mas devolvendo seu uso. “Os dois são corpos fraturados. É como se, a partir do contato físico, eles se fundissem e virassem uma bomba para se salvar”, diz.
“Queria fazer um filme popular, em que os espectadores não dormissem”, brinca o realizador
As faíscas provocadas pelo contato da pele suada dos atores se espalham por todas as cenas, explodindo nos radiantes néons do motel e no brilho caloroso das imagens externas. Para conquistar esse efeito, Aïnouz encarou desafios logísticos e rodou tudo com película.
“Fizemos um teste com a fotografia digital e ficou tudo amarelado. Ela não foi construída para luzes altas como a do sol do Ceará, que é branca e arde”, explica. “Queria muito representar essa sensação não só no sentido psicológico, mas no visual e no narrativo.”
Essa vibração reflete o ambiente de euforia estabelecido nas filmagens. Parte da equipe foi formada por cearenses. A maioria é de jovens ligados à escola Porto Iracema das Artes, mantida pelo governo estadual, e na qual Aïnouz coordena um projeto de formação de roteiro.
“Nunca tive um set com tanta gente tatuada e de short. É uma nova geração, com diversidade sexual e étnica, que foi privada de muitas coisas por conta do governo Bolsonaro e da pandemia”, afirma. O clima o contagiou com a mesma pulsão de vida que o filme retrata. “Acho que nunca fui tão feliz fazendo um filme.”
O projeto de Motel Destino foi aprovado em uma seleção da Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, mas o repasse dos recursos só foi feito quatro anos depois. A euforia com o retorno de Lula à Presidência do Brasil também está impregnada na produção, que marca a volta profissional do diretor à sua terra natal dez anos após Praia do Futuro (2014).
O trabalho consolida ainda um caminho buscado pelo diretor desde que trocou Fortaleza por Berlim para viver de cinema. “Passei por uma espécie de construção da autoestima e entendi que a gente tem valor. Por que não podemos quebrar uma série de preconceitos com o nosso próprio cinema?”, questiona.
A experiência fez tão bem que ele não vê a hora de filmar novamente no Ceará. Em setembro, Aïnouz roda na Europa Rosebushpruning, com Kristen Stewart, Elle Fanning e Josh O’Connor no elenco.
Mas, na sequência, retoma três novos projetos inspirados em seu mais novo lançamento: os longas-metragens Lana Jaguaribe, uma história de vingança que inverte os gêneros ao colocar uma mulher como pistoleira, e o western Trevo de Quatro Navalhas, ambientado no sertão, além de uma série com histórias de pessoas que passam pelo Motel Destino. •
Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um filme e muitos desejos’