O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) foi marcado por um discurso histórico na última sexta-feira, (7), durante a cerimônia de posse do juiz de direito de 2º grau João Marcos Buch no cargo de desembargador.
Durante a sessão solene, na Sala de Sessões Ministro Teori Zavascki, na sede do Poder Judiciário, em Florianópolis, Buch trouxe declarações de resistência e destacou a luta na defesa dos direitos humanos, um caminho – segundo ele – “irrenunciável”.
“Há valentões por todos os cantos, querendo governar o mundo e por consequência a Justiça. Pessoas que não aceitam projetos de vida coletiva, com melhor distribuição de renda, com direitos iguais, pessoas machistas, racistas e colonialistas; pessoas preconceituosas, homofóbicas e recalcadas; pessoas que disseminam o ódio e idolatram a guerra, a ditadura militar, que desejam retroceder ao préIluminismo. E por isso é que devemos sempre estar alertas e sempre ocupar os espaços em prol da democracia”, ressaltou Buch.
A cerimônia contou com a presença de desembargadores em atividade e aposentados, juízes, representantes da Justiça Federal, do Ministério Público, da Defensoria Pública do Estado, do Executivo e Legislativo, além da sociedade civil. Diante de todos, Buch concluiu: “Feliz daquele que é acusado de defender os direitos humanos, de tutelar os valores mais elevados, tendo a constituição como seu escudo”.
Leia a íntegra do discurso:
FLORIANÓPOLIS, 7 DE MARÇO DE 2025
DISCURSO DE POSSE NO CARGO DE DESEMBARGADOR DO TJSC
EXMO. DESEMBARGADOR FRANCISCO OLIVEIRA NETO
DD. PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA
EXMO. DESEMBARGADOR LUIZ ANTÔNIO ZANINI FORNEROLLI
DD. CORREGEDOR-GERAL DA JUSTIÇA
Nas pessoas de quem cumprimento a todas e todos os demais presentes. Pensei muito sobre o que falar neste momento. Creio que essas dúvidas, sobre o que dizer e o que calar, afetam todo aquele que se importa com o outro, que sabe que quando é chamado não pode falar sem dizer, ainda mais em espaços de poder como esses.
Certamente, devo lembrar de agradecer aos meus pares, que me receberam com tanta educação e fidalguia. Tenho aprendido muito com vocês, nos julgamentos colegiados, em conversas nos gabinetes,
tenho me sentido um jovem juiz recém empossado, ávido por conhecimento e vocês são um mar de
sabedoria.
Desembargadora Soraia, deixei em branco meu discurso nesta parte, para improvisar, pois sabia que suas palavras seria emocionantes e queria lhe falar de improviso…
Devo também registrar meu agradecimento a um desembargador em especial.
Na faculdade, eu havia decidido que queria ser juiz, porque encontrara referência única entre meus professores, o desembargador Pedro Abreu, então juiz em Blumenau. Nas lições de processo civil, ele nos ensinou a montar um processo, com petição inicial, contestação, réplica, até chegarmos na sentença e recurso. Ao final do semestre fui entregar o processo no gabinete dele. Ele me recebeu, folheou o material e finalmente perguntou qual carreira eu pretendia seguir. Olhei bem para ele e disse: “quero sentar na sua cadeira!”
Hoje tomo posse exatamente na cadeira deixada pela aposentadoria do Des. Pedro Abreu.
Então, Desembargador, meu profundo agradecimento.
Mas não desejo fazer deste discurso uma longa lista de agradecimentos.
Também não desejo falar de onde vim, de minha infância. Não tive uma história de superações, sempre
fui privilegiado, com uma família que me proporcionou educação e afeto. Sempre tive almoços de domingo, natal, ano novo, páscoa, viagens de férias para a praia, abrigo e segurança, tudo que uma criança pode ter para crescer e se tornar um adulto feliz; em síntese, sempre tive um porto seguro.
Quem sabe eu possa apenas lembrar de uma pequena história, mas já então quando eu era um jovem
adulto.
Com 22 anos de idade, recém formado na Furb, em Blumenau, com pouca experiência e muita
insegurança, mudei-me para Florianópolis, para ser secretário jurídico do saudoso Desembargador
Álvaro Wandelli, pessoa cuja humanidade me constituiu e permanece em mim.
Mas as dificuldades eram muitas. Como disse, eu tinha apenas 22 anos, não sabia das coisas da vida.
Então, telefonei para casa, para Porto União, minha linda terra natal, pujante cidade do norte do estado,
palco histórico da guerra do contestado e cujos acontecimentos são tão incríveis quanto à Macondo de
Gabriel Garcia Marques.
O telefone tocou e minha mãe atendeu, com seu sotaque característico de filha de alemães de Stuttgar de Munich.
Falei para ela que não estava aguentando, que retornaria para casa e lá seguiria meu caminho. Minha mãe, no auto de sua autoridade, respondeu: “Você não voltará, ficará e enfrentará tudo, a vida é assim e foi você que escolheu essa estrada. Pare de se lamentar, fique e enfrente!”.
Desliguei o telefone e, resignado, fiquei e enfrentei.
O que eu quero dizer é que se hoje estou aqui, é porque muitos, muitos mesmo, meus falecidos pais,
meus irmãos, cunhados, sobrinhos, minha família toda, meus amigos, queridos amigos, minha competente equipe de assessores, todos vocês me carregaram, ainda me carregam, vocês me aceitaram
nas suas vidas. Obrigado!
E já que retomei o caminho dos agradecimentos (a vida é feita de agradecimentos) aqui desejo fazer
mais um, a você, Lucas Fasolo, meu noivo, meu amor, você é o brilho e a beleza dos meus dias, é a
felicidade que me embala. Você é a prova de que não somos amados porque somos bons, a verdade é
que somos bons porque somos amados. Que sorte foi te encontrar!
Agora sim, deixando os agradecimentos, nesta etapa, quero mesmo é falar de um passado recente. E sobre isso matutei bastante, se falaria ou não. Resolvi que sim, que tenho o dever de falar.
O Brasil se redescobriu com a constituição de 1988, mas, parafraseando Walter Salles, diretor do premiado filme “Ainda Estou Aqui”, que trouxe a história do sequestro e assassinato de Rubens Paiva pela ditatura militar e os reflexos que esse hediondo crime trouxe para sua família, temos flertado novamente com o fascismo.
Há valentões por todos os cantos, querendo governar o mundo e por consequência a Justiça. Pessoas que não aceitam projetos de vida coletiva, com melhor distribuição de renda, com direitos iguais, pessoas machistas, racistas e colonialistas; pessoas preconceituosas, homofóbicas e recalcadas; pessoas que disseminam o ódio e idolatram a guerra, a ditadura militar, que desejam retroceder ao préIluminismo.
E por isso é que devemos sempre estar alertas e sempre ocupar os espaços em prol da democracia.
E neste ponto, como disse Walter Benjamin, é importante contar a história sob a perspectiva dos vencidos, pois senão os vencedores continuarão vencendo.
Pois bem, contarei a história de alguém que foi vencido, para que os valores morais, a dignidade, a
honradez que ele sempre defendeu, fortaleçam-se como pilares sociais e cívicos e, quem sabe, um dia
vençam.
Era uma vez um juiz de direito que trabalhava com aprisionados. Ele executava suas penas, penas de miseráveis, maltrapilhos e maltratados, seres humanos condenados por crimes, mas que, antes de tudo, tinham sido condenados pela pobreza e injustiça social. O juiz desde o início se dispôs a fazer diferente. Ele decidiu que aplicaria a lei, seus fundamentos, suas constitucionalidades e que se pautaria nos direitos humanos. Começou a rever posicionamentos jurídicos, a filtrar as normas pelos pactos e tratados internacionais, a sustentar posições das cortes superiores, que apontavam o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional no país.
Entretanto, logo o juiz percebeu que somente isso não era o suficiente, pelo contrário, exigir o respeito
aos direitos fundamentais encontrava resistências e podia trazer ainda mais dor. Não foram poucos os
que começaram a lhe atirar pedras, chamando-o de “defensor de bandidos”. O estigma que carimbava
a testa de todo preso logo passou a carimbar também a sua testa.
Aqueles eticamente pouco elevados não se contentavam em discordar dos julgamentos, eles queriam
mais, eles queriam eliminar o indesejado juiz. Não lhe faltariam injúrias, mentiras, ameaças.
E o que ele fez? Foi além! A desistência não lhe pertencia, não havia escolha, o caminho dos direitos humanos era irrenunciável. Guardou suas dores, suas abertas feridas, suas angústias, botou tudo no bolso e foi cuidar das dores, feridas e angústias dos outros. As inspeções às unidades prisionais tornaram-se mais frequentes, semanais, às vezes diárias. Nessas inspeções, que ele preferia chamar de visitas, a entrada na prisão não se resumia aos setores administrativos. Ele fazia questão de conversar com os trabalhadores do sistema, desde aqueles da saúde, da educação, até os de segurança e controle. Principalmente, ele transitava entre os miseráveis, maltrapilhos e maltratados detentos, ouvia suas dúvidas, suas queixas, suas esperanças.
Os detentos, que já acreditavam na Justiça que o juíz representava, começaram também a acreditar na sua humanidade. Aquele sujeito de terno e gravata, que tinha o poder de os julgar, olhava para eles,
perguntava como estavam, questionava sobre suas famílias, sua saúde, respondia a suas dúvidas. Ele
os respeitava, respeitava em sua humanidade.
Então, veio a pandemia, que além de colocar o mundo de joelhos, no Brasil aliou-se a um governo que
negava a ciência e que ao destruir a saúde pública, tentava destruir a frágil democracia.
E ele, juiz da execução penal, viu-se diante de mais um desafio, talvez o mais terrível de toda sua vida, o desafio de evitar que o vírus rebaixasse a humanidade dos presos, os tornasse não humanos.
Foram anos de tormentas e tempestades.
Mas ele seguiu, com a cabeça erguida, a espinha ereta, a força de quem sabe que está do lado certo da história.
Um dia, a calmaria chegou, não a do sistema, em cujos presos permaneciam sofrendo com superlotação, falta de trabalho, educação e saúde, mas daqueles que não tinham lealdade aos princípios que compõem o caráter, esses pararam de o atacar, sossegaram, por assim dizer. O juiz reputou aquele “armistício” à sua própria persistência. Também atribuiu o fato aos novos ventos republicanos que, como revolução retificadora, restabeleciam os pilares da república.
Ele estava enganado, não havia armistício.
Depois de muitos anos de carreira, chegara o momento de ascender ao Tribunal, como desembargador
substituto. Após ponderar e refletir, tomou a decisão, a hora era aquela, era preciso abrir caminho aos
mais novos, a renovação era necessária. Inscreveu-se como candidato.
Sendo o mais antigo, ainda que a votação viesse a considerar o merecimento no exercício das funções, não tinha dúvidas que galgaria ao posto. E começou a preparar a todos sobre sua saída da Vara de Execuções Penais. Conversou com os mais diversos setores, desde advogados, policiais penais, policiais militares, policiais civis, conselheiros do conselho carcerário, defensores públicos, promotores de justiça, servidores, colegas, até chegar principalmente nos presos. Sua saída das funções não poderia ser de surpresa, isso geraria abalos estruturais. Segurança pública se fazia com confiança pública e era importante deixar tudo bem transparente, bem pontuado.
Eis que, na data marcada, o juiz não foi aceito, por uma apertada maioria de votos ele não foi
considerado merecedor. Os motivos, esses não foram declarados. A recusa foi seca, insípida, mas, era
evidente que se devia à sua postura ética e humanista.
Nova tempestade o atingiu. Ele sentiu vergonha! Vergonha perante sua equipe, seus assessores, que
tanto nutriam os sentimentos românticos sobre a Justiça, vergonha por ficar abalado por algo que não
se comparava à tristeza e ao sofrimento da insegurança alimentar de milhões de brasileiros, vergonha
por não ter previsto com mais concretude que aquele golpe extremamente injusto tinha data marcada
para acontecer.
Outra vez ele teria que se recompor, levantar-se e seguir seu caminho.
Sem se altear como paradigma dos direitos humanos, o juiz conhecia a história das grandes
personalidades que lutaram pelas causas sociais, pela igualdade de oportunidades, sujeitos alçados à
condição de luz do horizonte ético e humano. Todos encontraram resistências, todos sofreram, todos
foram em algum momento incompreendidos e vítimas de ataques violentos, alguns perderam a própria
vida. Mas, jamais perderam a dignidade!
Em 1925, Charles Chaplin avaliou que a grande questão do personagem O Vagabundo é que não
importava o quanto ele podia estar por baixo, não importava o quanto os chacais tivessem conseguido
acabar com ele, ele ainda era um homem com dignidade (Chaplin – Uma Vida, de Stephen Weissman).
Lembrando dessa lição, o juiz concluiu que a sua felicidade, como categoria ética de dignidade, jamais
seria nocauteada. Feliz daquele que é acusado de defender os direitos humanos, de tutelar os valores
mais elevados, tendo a constituição como seu escudo. Era esse o fio de Ariadne que o conduzira até ali
e seria por ele que novamente se ergueria e se colocaria no eixo.
Lembrando Rainer Maria Rilke, era preciso deixar tudo lhe acontecer, beleza e terror, apenas seguir,
porque nenhum sentimento era eterno.
Hoje, 7 de março de 2025, como falou Mário de Andrade, ao fundar o modernismo há um século, “não
há mais paredes, só horizontes”.
Reza a lenda que Luiz XIV, o rei sol, certa vez assim disse a filho: “Sempre olhe para o futuro. É onde
os obstáculos e inimigos o aguardam. Mas você não pode encarar o futuro, até conquistar o passado.
Então, você estará livre.”
Eu conquistei meu passado e hoje encaro o futuro, estou livre!
Muito obrigado!
João Marcos Buch – Desembargador
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