Quando decidiu abandonar o título de primeiro-bailarino da Royal Ballet, em 2019, o carioca Thiago Soares queria liberdade para experimentar novos projetos, mas havia algumas premissas a seguir. Uma delas era não abandonar o ritual diário de aulas de balé.

Sem as atribuições de um cargo fixo, sua relação com a técnica e o próprio corpo mudou. “Meus amigos dizem que estou melhor. Achava que era piada, mas depois entendi o que eles queriam dizer”, afirma. Aos 43 anos, o artista usa a maturidade a seu favor.

Se o corpo não é o mesmo de duas décadas atrás, os treinos tornaram-se mais eficientes para atender ao grau de exigência que ele e o público esperam de quem permaneceu por uma década e meia no topo de uma das mais prestigiadas companhias de dança do mundo.

Essa bagagem é o combustível de Último Ato, espetáculo idealizado e estrelado por Soares, com temporada que vai da sexta-feira 2 até 18 de agosto no Teatro Unimed, em São Paulo. Apesar de sugerir um adeus, o título é, na verdade, uma brincadeira com o prazo de validade imposto a bailarinos e a pressão exercida sobre eles para colocar um ponto final na carreira.

“Como fiz um espetáculo de despedida em Londres, ouvi do pessoal no Brasil que precisava fazer algo do tipo aqui”, explica. Naquela ocasião, Soares dançou o papel-título de Onegin, coreografia de John Cranko inspirada no romance de Alexander Pushkin. É uma obra narrativa, de longa duração, bem diferente da proposta do novo trabalho, construído a partir do balé, mas com aceno a outras técnicas, como as danças urbanas, o tango e o samba.

As escolhas são uma referência à biografia do bailarino. Seu primeiro contato com a dança, na adolescência, foi por meio da break dance e do hip-hop. Por 13 anos, ele protagonizou um dos romances mais comentados do mundo do balé com a argentina Marianela Nuñez, também primeira-bailarina do Royal. Em 2022, estreou no sambódromo como coreógrafo da comissão de frente da Imperatriz Leopoldinense.

Em Último Ato, o artista aprofunda um percurso testado em projetos recentes, nos quais desdobra sua atuação para além da interpretação. Da trilha sonora à cenografia, passando pelo figurino, a coreografia e a direção geral, tudo tem a mão de quem pôde acompanhar de perto o trabalho de alguns dos principais responsáveis pela atualização do balé para as novas plateias do século XXI, como Wayne McGregor e Christopher Wheeldon.

Em cena, as vivências dos bastidores na companhia britânica se somam à característica pela qual ganhou fama na Europa: a potência dramática de suas interpretações, o que o fez transitar com desenvoltura entre papéis de príncipes, vilões e personagens abstratos.

“Nos anos 1980 e 1990, havia um fetiche em torno dos bailarinos russos. Desde os anos 2000, começaram a olhar mais para os latinos”, diz ele

É a mesma energia percebida pela imprensa internacional em outros artistas brasileiros. Como são poucas as oportunidades profissionais estáveis no Brasil, eles trilham os passos do carioca e, nas últimas décadas, vêm ocupando lugares de destaque em companhias norte-americanas e europeias.

Um desses nomes é Isabela Coracy, do Ballet Black. Por seu desempenho como Nina Simone, ela ganhou em abril o título de melhor bailarina do Prêmio Olivier, maior honraria das artes cênicas britânicas. Outro é o de Mayara Magri que, no Royal Ballet, destaca-se como primeira-bailarina. Nos Estados Unidos, Jovani Furlan e Daniel Camargo ocupam o mesmo posto, respectivamente, no New York City Ballet e no American Ballet Theater.

“Nos anos 1980 e 1990, havia um fetiche em torno dos bailarinos russos. Desde o início dos anos 2000, começaram a olhar mais para os latinos. Vieram o (cubano) Carlos Acosta, a (argentina) Marianela, a (brasileira) Roberta Marquez. No Royal, fiz toda a trajetória desde o corpo de baile. Sinto que ajudei a abrir essa porta, mostrando aos bailarinos daqui que é possível chegar lá”, diz.

A relação com jovens artistas tem sido uma tônica na nova fase de Soares. Em 2020, ele montou um estúdio de dança no Rio e começou a se aventurar como professor. O contato com a cena de dança carioca também o fez convidar quatro novos talentos para contracenar com ele em Último Ato.

Entre 2021 e 2023, esse intercâmbio deu-se, paralelamente, no México, onde se tornou diretor artístico do Ballet de Monterrey. O trabalho exigiu um equilíbrio entre o exercício da criatividade e as demandas de um negócio que, entre a busca por patrocínio e venda de ingressos, precisa garantir recursos para empregar bailarinos e fomentar novas produções. Foi uma oportunidade para pôr em prática o mestrado em gestão cultural feito no King’s College de Londres, mesma instituição pela qual recebeu o título honoris causa de doutor em Artes.

A experiência gerencial contribui agora para os novos projetos. Após ter estreou como diretor de cinema no curta-metragem Vermelho Quimera, apresentado em 2022 no Festival de Cannes, ele se prepara para ver sua história retratada no longa-metragem Um Lobo Entre os Cisnes, dirigido por Marcos Schechtman. O filme, com estreia prevista para 2025, conta como o rapaz crescido no subúrbio do Rio tornou-se, com apenas cinco anos de balé, o primeiro brasileiro a conquistar a medalha de ouro no Concurso Internacional do Ballet Bolshoi, na Rússia.

Publicado na edição n° 1322 de CartaCapital, em 07 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um corpo sempre em expansão’

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Última Atualização: 01/08/2024