Um Completo Desconhecido

por Solange Peirão

Em tempo de Oscar e premiações, ocasião em que as opiniões controversas, até beirando o cancelamento, publicam-se em abundância, volto minha atenção para o desempenho excelente de Timothée Chalamet em Um Completo Desconhecido.

Por se tratar de uma cinebiografia, Bob Dylan nesse caso, o protagonista é o tema central, e isso por si já basta para colocá-lo em posição de destaque na dramaturgia. Digo isso, pensando no premiado Adrien Brody de O Brutalista. Mesmo com bom desempenho, o roteiro, a meu ver, tem muitos pontos negativos. Daí vem a pergunta: é possível a excelência de um ator cobrir as falhas de um roteiro? E vice-versa, um bom roteiro sobrevive com atuações medíocres? O fato é que em cinebiografias, certamente, o filme estará condenado com uma má atuação. 

Quanto à performance de Timothée Chalamet, impressiona como conseguiu desviar-se da imitação pura e simples da personagem icônica que representava, para apenas sugerir que, de fato, estamos diante de Bob Dylan.

A voz anasalada do ator, nem de longe guarda a mesma intensidade da de Dylan, mas está presente. O olhar furtivo, de esguelha, as frases curtas, os espaços de silêncio estruturam o conjunto narrativo, como que a mostrar que há um olho no entorno, no mundo, e outro voltado para o interior.

Aquela introspeção, em suma, que parece sempre e incansavelmente destinada a criar poesia em forma de canção. É muito reveladora dessa situação a observação de Joan Baez (com interpretação primorosa de Monica Barbaro, entre contida e emotiva), quando Dylan invade de madrugada seu apartamento. Lá pelas tantas, ao invés de estar com ela na cama, está compondo na mesa ao lado. “Veio aqui pra que eu te veja criar?”, explode a cantora. Inveja desse turbilhão criativo do amigo, ela própria também uma compositora? Nesse momento, talvez sim. Mas seguramente impressiona o olhar dela nas últimas parcerias deles no palco, em que ela observa o cantor, e parece ter compreendido toda dimensão que esse músico começava a representar.

Na mesma direção, chama atenção o olhar da musa daqueles anos, Suze Rotolo, que no filme aparece com o nome fictício de Sylvie Russo (interpretada por Elle Fanning), a pedido do próprio Bob Dylan. Nas apresentações iniciais em que Sylvie observa, à distância, a dupla Baez e Dylan no palco, seu olhar não esconde os ciúmes desse encontro, musical e afetivo ao mesmo tempo. E como é expressivo, nas cenas finais, aquelas mesmas que desnudaram para Joan Baez a grandeza de Dylan, a transmutação do olhar de Sylvie, ao compreender que não perdeu Dylan para Joan, mas para uma plateia promissora e crescente de admiradores.  

Os cortes privilegiados das canções (registre-se que as gravações foram feitas ao vivo, e tanto Timothée como Monica são os intérpretes), das mais célebres, como Mr. Tambourine Man, Blowin´ In The Wind, Like a Rolling Stone, às demais, não estão a serviço de se compreender o contexto em ebulição por onde se moviam os músicos, naqueles anos. Nem tampouco dar a conhecer, de forma aprofundada, a criação de Bob Dylan. Os trechos escolhidos servem, isso sim, para introduzir a ideia de que uma nova direção na linguagem e na poética musical estavam em andamento, marcadas pelos discursos longos, truncados, sem dúvida a expressão do que acontecia no mundo concreto e no mundo interno de Dylan.

Uma prova de que James Mangold, diretor, apostava nessa centralidade do filme sobre o artista e o ator que o representava, me parece ser o fato de que todo o cenário político e das militâncias daqueles anos (a crise dos mísseis em Cuba, o assassinato de Kennedy, as passeatas pelos direitos civis) sempre são mostrados usando o artifício da televisão, o meio de comunicação de massa consolidado nos anos 1960. As tomadas diretas das cenas, sem esse recurso de mediação, são as que se voltam à vida pessoal de Dylan, seu passeio pelos clubes noturnos de Nova York, sua apresentação nos festivais.

É certo que se pode identificar no filme duas fases.

A do início que delineia a figura Bob Dylan. Sua chegada a NYC, seu contato primeiro com os dois grandes do folk americano, Pete Seeger (Edward Norton) e Woody Guthrie (Scoot McNairy), além das duas mulheres, Suze e Joan. Quanto à produção autoral, só uma ou outra música, que tem a função de deslumbrar seus mentores e amigos a respeito dessa nova e talentosa promessa. E nesse momento é o Dylan amante do folk, apoiado no violão e na harmônica, que canta suas canções e a dos seus ídolos.

A produção própria abundante ganha força, e o filme, nessa segunda fase, parece integrar mais o artista, seu processo criativo, suas vivências pessoais, seus conflitos. O cenário predominante são os festivais, nos quais se expõem paulatinamente suas transformações, suas novas formas musicais que incorporam o rok e a guitarra elétrica. E aqui também a resistência dos puristas do folk que não aceitam as transmutações, para quem as categorias são duais, sem interferências, sem intercâmbios.

Para Dylan, não. E essa maneira de fazer música, liberto dos rótulos, é sua verdade mais cara. No filme, a estrada percorrida em cima de uma moto em velocidade é a bonita metáfora da transformação, da metamorfose.

Não se deixar prender a nada, não se deixar prender ao que não é visceralmente fundamental. Enfim, fazer o caminho, fazer a descoberta, ao percorrê-lo. Uma frase nessa direção ilustra, de início, o belo documentário Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, de 2019. É bom vê-lo, ou revê-lo, para sentir o Bob Dylan real, na sequência temporal do filme, ou seja, a década de 1970, e – por que, não? – avaliar melhor a atuação esmerada de Timothée Chalamet. 

Solange Peirão – Historiadora e diretora da Solar Pesquisas de História

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Last Update: 13/03/2025