A morte de Silvio Santos, aos 93 anos, neste sábado, 17 de agosto, praticamente monopolizou o noticiário nacional. Uma comoção proporcional ao fato de que o apresentador e empresário, há muito considerado o “maior comunicador da TV brasileira”, cativou gerações de fãs durante os 60 anos em que se manteve à frente de seus programas de auditório.
Confesso, inclusive, que fiz parte destas gerações, já que, assim como muitos daqueles e daquelas que sequer tinham condições de ter um aparelho de TV nos anos 1960-70, também cresci com o “ritual dominical” de assistir aos programas ao redor da telinha em preto e branco, colocada por um vizinho na janela ou no pátio de onde morava.
Contudo, por mais compreensível que seja a comoção que sua morte provoque em milhões, num país onde a telinha da TV é a única janela aberta para o lazer e o alívio das durezas do dia a dia, este artigo não está dentre os que, hoje, lamentam a morte do apresentador ou estão a serviço de erguer um altar para celebrar sua vida e obra.
Pelo contrário. Minhas memórias de Silvio Santos não têm a ver com a celebração do entretenimento popular, com seu inegável talento como comunicador, com a exaltação de um “homem do povo” que fez fortuna através de seu carisma e do “trabalho duro”, e, menos ainda, com as homenagens que devem ser prestadas a alguém que era “gente como a gente”.
Silvio Santos não era “um dos nossos”. E não só porque se tornou um perito na manipulação dos sonhos e desejos de nosso povo, prometendo um “baú da felicidade” que, no fim das contas, só servia para aumentar sua própria fortuna, ao mesmo tempo em que submetia suas “colegas de trabalho” a espetáculos patéticos de humilhação e constrangimento.
Sua trajetória, ao invés de exemplar da capacidade do povo pobre em trabalhar duro para “chegar lá”, como a mídia está vendendo à exaustão diante de sua morte, é típica daqueles que, se colocando do lado errado da História, sabem como tirar vantagens das relações com os poderosos, a começar pela ditadura militar e chegando até o bolsonarismo.
A criação de um personagem
Até mesmo porque repetida à exaustão, todo mundo conhece um pouco da trajetória do apresentador. Ou, pelo menos, aquela que se tornou pública e “oficial”.
Nascido Senor Abravanel, em dezembro de 1930, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, Silvio já demonstrava seu impressionante “senso de oportunidade” quando se tornou camelô, em 1946, vendendo capas para o título de eleitor durante as primeiras eleições democráticas depois da Ditadura Vargas.
Na sequência, atuou como locutor em emissoras de rádio e na veiculação de anúncios na Barca de Niterói. Logo depois, em 1950, já morando em São Paulo, assumiu o posto de locutor na Rádio Tupi. No mesmo período, atuou como animador em circos, onde foi descoberto pelo comediante Manuel da Nóbrega, que o apadrinhou na Rádio Nacional e com quem se associou, em 1958, o esquema do Baú da Felicidade.
Em 1960, assumiu o programa “Vamos brincar de forca”, na TV Paulista (depois, TV Globo). E, não por acaso, foi na emissora da família Marinho que, entre 1965 e 1976, Silvio Santos se tornou uma referência nacional, em programas como “Topa tudo por dinheiro”, “Show de calouros”, “Qual é a música” e “Namoro na TV”, fama e formatos que ele carregou consigo, nos anos seguintes, para a Tupi e a Record, até “ganhar”, em 1980, a concessão do Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT.
Antes e depois disto, Silvio ramificou seus investimentos, criando empresas que lhe garantiram entrar, em 2013, para a seleta lista de bilionários da revista “Forbes”, que, na época, lhe atribuiu um patrimônio de US$ 1,3 bilhão (cerca R$ 7 bilhões, em valores atuais), ancorado em uma fazenda, no Mato Grosso, com 10 mil cabeças de gado, em concessionárias de veículos e construtoras; no mercado imobiliário, hoteleiro e financeiro, como o Banco Panamericano e a Tele Sena; em indústrias de cosméticos (Jequiti) e uma série de outras empresas.
Empresas que, desde os anos 1960, giravam em torno de uma verdadeira “roda da fortuna”: sua quase onipresença no domingo de milhões de brasileiros.
Um império construído com o apoio e sobre os destroços da ditadura
Sua entrada na Globo, em 1965, se deu exatamente sob esta lógica. Um ano antes, Silvio havia assumido o comando do “Baú da Felicidade” e, para impulsionar seus negócios, o empresário decidiu “alugar” um espaço na grade dominical da programação da emissora. No início, eram duas horas. Mas, em 1968, o programa se estendia por até oito horas, durante as quais atingia uma média de mais de 40% da audiência.
O segredo do sucesso? Adaptar para cá o pior da TV norte-americana, numa série de atrações cujo fortíssimo apelo popular estava a serviço de manter o povo na mais profunda alienação, não só no sentido de “distanciamento da realidade”, mas também na manipulação dos desejos e sonhos da população mais carente, disposta a se submeter a qualquer tipo de constrangimento para “aparecer na TV” e, ainda, ganhar uns trocados.
Na época, enquanto a ditadura fechava o tempo com a imposição do Ato Institucional n° 5 (AI-5) e perseguia, prendia, torturava e assassinava opositores, Silvio Santos servia como um animado garoto propaganda dos milicos em episódios deploráveis.
Somente no final dos anos 1960, três foram particularmente nefastos. Em 1968, levou ao ar um relato absurdo que tentava atribuir o assassinato do estudante secundarista Edson Luis, no Rio de Janeiro, aos seus próprios companheiros “comunistas”. Na mesma época, também exibia o programa “Como vai, Sr. Ministro?” que, por exemplo, abriu espaço para que o então presidente da Petrobras, Ernesto Geisel, defendesse a quebra do monopólio na extração e distribuição do petróleo.
Por isto tudo, não surpreende que seu império televisivo tenha sido, literalmente, construído sobre os destroços fabricados pela ditadura e com o patrocínio dos generais. Em 1975, Ernesto Geisel lhe concedeu a frequência, no Rio de Janeiro, da TV Continental, cujos direitos ele próprio havia cassado em 1972 e cuja massa falida também passou para as mãos de Silvio, em 1976.
Na época, uma matéria do “Jornal da Tarde” sintetizou a intimidade de Silvio com o regime militar, reproduzindo, as expectativas do então Ministro das Comunicações com a emissora que seria administrada por Silvio: “segundo declarações do ministro Euclides Quandt, ela não será exclusivamente dirigida a um público de elite, mas manterá um alto nível de trabalho, procurando atingir ‘um grande público com transmissão de programas com mensagens positivas (positivas para o Baú da Felicidade, é claro).” E também para a ditadura, é preciso acrescentar, que satisfeita com os bons serviços prestados, continuou a patrocinar sua ascensão.
Ainda em 1976, o apresentador fez outras duas aquisições. Comprou os estúdios da extinta TV Excelsior, fechada, em 1970, depois de um intenso e criminoso processo de perseguição pela ditadura, apoiado pelo boicote das empresas que sustentavam os militares, e abocanhou, também, 50% da TV Record.
Assim, mesmo antes de ter uma emissora de alcance nacional para chamar de sua, Silvio Santos passou a ter o privilégio de ver seu programa veiculado em três canais: a Tupi, a Record e a TVS (embrião do SBT).
Mais que um “bobo da corte”, um porta-voz da direita
O grande salto, contudo, se deu em 1981, quando, amadrinhado pela primeira-dama Dulce Figueiredo (mulher do ditador que declarou que preferia o cheiro de cavalos ao do povo), Silvio “ganhou” a concessão da TV Tupi, num processo cercado de irregularidades.
Essa intensa parceria com os ditadores era uma via de mão dupla. O perfeito “toma lá, dá cá”. Enquanto Silvio aumentava sua fortuna, os ditadores podiam contar com um aliado particularmente importante a partir da segunda metade dos anos 1970, quando a eclosão da crise econômica mundial e de crises políticas internas (como a repercussão dos assassinatos do jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Santos Dias) forçavam os ditadores a buscarem novas alternativas para se manterem no poder.
Algo que viam como necessário, inclusive no campo da comunicação, já que, mesmo continuando fiéis aos militares, até mesmo os grandes veículos de imprensa começavam a, timidamente, dar voz à necessidade de uma “abertura”.
E Silvio cumpriu seu papel à risca. Com o SBT, em 1981, também nasceu o programa “A semana do presidente”, um lixo propagandístico, apresentado todos os domingos, com bizarras exaltações da ditadura e a venda de país cuja distância da realidade era ainda mais amplificada pelo crescente ódio ao regime.
Com a derrubada do regime, tal qual um “bobo da corte” medieval, que serve ao rei que melhor garanta sua existência, Silvio se adaptou rapidamente à nossa inconclusa redemocratização, sem, contudo, jamais se distanciar da “direita”, chegando, inclusive, a flertar com cargos públicos.
Em 1988, se apresentou como candidato a prefeito de São Paulo pelo Partido da Frente Liberal (PFL) – herdeiro do partido dos ditadores, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). No ano seguinte, quis disputar a presidência pelo Partido Municipalista Brasileiro (PMB).
Nenhuma das tentativas decolou, o que não significa, contudo, que o apresentador não tenha prestado seus serviços aos piores e mais asquerosos setores políticos que estiveram no poder neste país. E isto até o fim, já que morreu filiado ao União Brasil.
Bolsonarista e, de forma alguma, um aliado dos setores oprimidos
Neste sentido, vale lembrar que, depois de ser interrompido no final do governo FHC, o abominável “A semana do presidente” ensaiou um retorno exatamente em 2020, para dar voz a Jair Bolsonaro, com quem Silvio travou amistosa relação desde as eleições de 2018, tendo colocado sua emissora a serviço da propaganda favorável à Reforma da Previdência, em 2019, ou das manifestações de ultradireita e fundamentalismo, no 7 de setembro do mesmo ano, protagonizadas por Bolsonaro e Edir Macedo.
Por isto, também não causou espanto que, em junho de 2020, Bolsonaro tenha empossado o deputado federal Fábio Faria no Ministério das Comunicações com a seguinte apresentação: “Vamos ter alguém que não é profissional do setor, mas tem conhecimento, até pela vida que tem junto à família do Silvio Santos”, lembrando que o deputado era casado com Patrícia Abravanel, uma das filhas do dono do SBT.
Exatamente em função desta sintonia com Bolsonaro e sua laia, acreditamos que seja um erro que, hoje, diante da morte do apresentador, até mesmo setores comprometidos com a defesa dos direitos de mulheres, negros e negras, LGBTI+ e demais setores oprimidos façam coro com exaltação de Silvio.
É verdade, sim, que seus programas abriram espaço para travestis, mulheres trans e LGBTI+. Como também é inegável que sempre tiveram a participação de negros e negras e gente da periferia. Mas, aqui, novamente é preciso questionar o que se entende por “representatividade” e “visibilidade”. Ou seja, é preciso perguntar “como”, “sob qual ótica” e com quais objetivos essas pessoas circularam pelo mundo de Silvio Santos.
Como já foi discutido inclusive em teses e trabalhos acadêmicos, a regra geral desta exposição sempre foi a mesma: tratar os “diferentes” como personagens e não seres humanos, através da exploração do “exótico”, da ridicularização disfarçada de gracejo inocente e do assédio revestido pelo “acaso” e o “humor”. Tudo isto explorado para alavancar a audiência.
No decorrer dos anos, não faltaram exemplos, muito dos quais que vieram a público em processos quase sempre contornados. De crianças expostas a insinuações e diálogos cheios de teor sexual a mulheres apalpadas e objetificadas em público. De cabelos afro ou “black-power” ridicularizados a gente humilde colocada em situações vexatórias. De insultos gordofóbicos a repugnantes imitações de trejeitos “tipicamente” gays ou lésbicos.
E, sinceramente, dizer que isto precisa ser entendido dentro daquele “contexto histórico” simplesmente não basta. Até mesmo porque estas práticas adentraram o século 21.
Tudo por dinheiro
Ao fim e ao cabo, para Silvio Santos, apesar de suas incessantes declarações de “amor ao povo brasileiro”, esse mesmo povo não passava de uma coisa: pontos na escala do Ibope que se materializavam nos bilhões que recheavam sua conta bancária.
Bilhões cujas origens, ao contrário de exemplo precoce de “empreendedorismo”, como está sendo martelado pela mídia, devem ser procuradas no seu extraordinário senso de oportunidade e na completa ausência de escrúpulos no que toca a se aproveitar dos desejos, sonhos e ilusões exatamente daqueles e daquelas que, contraditoriamente, o idolatram e, neste momento, lamentam sua morte: os mais pobres e oprimidos, particularmente as mulheres.
Neste sentido, o “Baú da Felicidade” é tanto a fonte quanto o típico exemplo de seus empreendimentos. Como qualquer um que tenha crescido na periferia sabe, o esquema se baseava na aquisição de um “carnê” que deveria ser pago rigorosamente em dia, com a promessa de retorno na forma de sorteios de prêmios, participação nos programas de TV e, após um prazo determinado, a troca do valor pago por mercadorias, nas “Lojas do Baú”.
Promessas que alimentavam um ciclo de lucros e audiência, já que seduziam milhões que não mediam esforços para pagar as prestações e, também, acompanhavam os programas sonhando com o tão desejado sorteio. Coisa que, na prática, só se transformava em realidade para um punhado de milhares, e, no fim das contas, era exemplar da regra básica de qualquer jogatina: “a casa sempre ganha”. No caso, a mansão de Silvio, no Morumbi, em São Paulo.
E ganhava muito. Inclusive contando com o fato de que muitos daqueles e daquelas que faziam enormes esforços para manter o carnê em dia, acabariam não conseguindo pagar as prestações. Ou seja, uma das maiores fontes de lucro do esquema era exatamente se aproveitar da incapacidade dos mais pobres em quitarem o carnê.
Ao mesmo tempo, seus programas, desde a estreia, em 1965, na Globo, faziam com que os lucros se multiplicassem. Seja como parte de seus jogos e atrações, seja como patrocinadores.
Por uma TV diante da qual possamos, de fato, sorrir e cantar
Em junho de 2023, pouco antes de falecer, o genial dramaturgo José Celso Martinez Correa sintetizou em uma frase a disputa que manteve com Silvio Santos, por mais de 40 anos, em torno do terreno ao redor do Teatro Oficina Uzyna Uzona, cuja propriedade era do apresentador, que queria erguer edifícios para ampliar seus império imobiliário, e Zé Celso e sua trupe, que desejavam transformar a área em parte do “Parque do Bixiga”, preservando o tombamento do Teatro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico.
“É a vida como ela é. Vivemos no capitalismo. É muito mais fácil fazer o que eles fizeram [entrar com o pedido liminar] do que ter uma atitude de grandeza e generosidade e doar o terreno”, declarou Zé Celso diante de mais uma medida judicial conquistada pelo Grupo Silvio Santos para impedir o avanço do Parque.
Depois de inúmeras manifestações no decorrer das décadas e do impacto causado pela morte trágica de Zé Celso, o apresentador aceitou um acordo (que aumentou sua fortuna em R$ 65 milhões) para que o Parque finalmente saia do papel. Agora, com a morte de Sílvio, há uma outra disputa em curso: se o espaço será nomeado em homenagem a Zé Celso ou ao apresentador.
Nós, não temos dúvidas em relação a isto. Evoé, Zé Celso! Como também temos certeza que, “personagem à parte”, Silvio Santos teve plena consciência do lado da História em que se colocou e de seus objetivos.
“Programas sérios, de debate, não fazem público. A verdade é que a TV é uma arena (…). A luta pela audiência é feroz e ninguém trabalha para perder dinheiro. Se a TV é comercial e só, a única preocupação tem de ser mesmo ganhar dinheiro”, declarou o apresentador, em setembro de 1969, em uma entrevista à revista “Realidade”.
Por isso, mesmo respeitando a comoção popular causada por sua morte, como também a perda sentida por seus familiares e amigos, hoje, não somos parte do coro que exalta e praticamente beatifica o apresentador. Pelo contrário.
O guardamos como o lembrete de que é preciso lutar para que, um dia, a TV e todas quaisquer outras formas de entretenimento não estejam a serviço do lucro e das fortunas pessoas. Mas, sim, que sejam democraticamente controladas pelo povo e, assim, possam refletir, com dignidade e respeito, os verdadeiros sonhos e desejos do povo trabalhador deste país.