É possível e desejável criar uma nova moeda internacional como alternativa ao dólar dos Estados Unidos? O tema é controvertido. Muitos acreditam que não é possível, outros tantos que não é desejável. Faço parte da minoria que acredita que ela é não só possível, como desejável e talvez indispensável.
Já escrevi algumas vezes sobre a criação de uma nova moeda de reserva, inclusive aqui mesmo nesta coluna, há pouco mais de dois anos, em agosto de 2023, sob o título “Uma moeda BRICS?”. Desde então, desenvolvi a proposta de forma mais completa e abrangente, em trabalho que estou concluindo agora, com apoio da Cepal e do IPEA. Vou resumir hoje alguns dos principais aspectos da ideia. O que pretendo com isso é colocar em discussão uma alternativa inovadora que deve ser submetida a críticas, pois certamente precisa de aperfeiçoamentos e revisão.
Na história monetária mundial dos séculos recentes, o papel de moeda internacional foi desempenhado principalmente por moedas nacionais. Uma (ou algumas poucas) moedas nacionais, emitidas e gerenciadas por bancos centrais nacionais, serviram e servem de moeda internacional. Como os objetivos nacionais do país ou países emissores geralmente não coincidem com os dos demais países, só por acaso a moeda internacional servirá de forma adequada aos interesses dessas outras nações.
Precisamos, na verdade, de algo que não tem precedentes práticos: uma moeda internacional que não desempenhe funções nacionais, como tentarei explicar. Mas antes mostro rapidamente que não há alternativas disponíveis ou eficientes no mundo hoje.
Descartando alternativas
As alternativas que temos ou são inconvenientes ou são improváveis. Um cenário possível, por exemplo, seria continuarmos convivendo com o sistema dominado pelo dólar (e, secundariamente, pelo euro). Mas isso não convém aos países emergentes do Sul Global. O sistema dólar é ineficiente, pouco confiável e até perigoso. Virou um instrumento de chantagem e sanções. Além disso, vai ficando cada vez mais clara a precariedade dos fundamentos monetários, fiscais e financeiros da economia dos EUA, o emissor da moeda hegemônica.
Será que o dólar poderia ser substituído, pelo menos em parte, por outras moedas do Norte Global? Esse outro cenário também não se mostra factível. O euro sofre dos mesmos problemas que o dólar, pois também foi desvirtuado como instrumento de sanções. E a situação econômica da Europa é ainda mais problemática do que a dos EUA. O iene japonês tem problemas semelhantes. Nunca chegou a desempenhar grande papel internacional; além disso, a economia japonesa não vai bem e não inspira confiança.
As outras moedas do Norte Global ou são pequenas demais (franco suíço, dólar canadense ou dólar australiano, por exemplo) ou sofrem também com as fragilidades das economias dos países que as emitem (caso do Reino Unido). O ouro, por sua vez, dada a intensa volatilidade do seu preço, não tem condições de substituir o dólar, a não ser parcialmente, como ativo de reserva para bancos centrais e outros agentes econômicos — algo que já vem acontecendo e resultou na explosão do preço do ouro.
O único cenário que talvez apresente alguma viabilidade seria a internacionalização em larga escala da moeda chinesa. O renminbi vem se tornando mais importante no cenário mundial, refletindo o peso crescente da economia chinesa. Mas falta muito para que ele possa substituir o dólar de forma expressiva. E os chineses relutam em tentar.
Por quê? O assunto é complexo. Tento resumir. Para que a internacionalização da moeda chinesa fosse viável, haveria pelo menos duas pré-condições: livre conversibilidade e disposição de permitir uma grande apreciação cambial. O governo chinês hesita quanto a esses dois pontos — e com razão.
No caso chinês, livre conversibilidade significaria essencialmente remover os controles de capital, elemento central da política econômica chinesa nas últimas décadas, que muito contribuiu para sua estabilidade. A valorização externa do renminbi, por seu turno, ameaçaria a competitividade das exportações, uma das principais fontes de dinamismo da economia chinesa. Como se diz no futebol: por que mexer em time que está ganhando?
Mesmo que os chineses quisessem ou pudessem seguir o caminho da ampla internacionalização de sua moeda, fica uma pergunta: do ponto de vista dos demais países do Sul Global, não estaríamos trocando seis por meia dúzia? Outra moeda nacional — o renminbi — ocuparia o espaço deixado pelo dólar. O Banco Popular da China substituiria a Reserva Federal dos Estados Unidos; o renminbi substituiria o dólar, em parte ou totalmente; e a China passaria a emitir o ativo de reserva mundial. O resto do mundo continuaria a experimentar, ainda que talvez de forma mais branda, problemas semelhantes aos atuais.
Ou seja: há espaço para criar uma nova moeda de reserva. Qualquer proposta — há mais de um caminho possível — enfrentará problemas geopolíticos (fundamentalmente a resistência dos EUA) e técnicos (não é fácil construir uma estrutura institucional e operacional capaz de gerar confiança na nova moeda). Mas enfrentar o desafio parece necessário, inclusive porque não se pode descartar que ocorra, nos próximos anos ou até nos próximos meses, mais uma crise financeira de grandes proporções nos mercados ocidentais de capitais, como o estouro da bolha acionária associada à inteligência artificial e às empresas de tecnologia.
Caso isso venha a ocorrer, a economia dos EUA e o dólar, já fragilizados, enfrentarão uma aceleração de seu declínio. Haverá uma busca desenfreada e desorientada por alternativas. Melhor, portanto, discutir alternativas sem demora.
Um caminho possível
Qual seria o melhor caminho para uma nova moeda?
Um caminho, em tese, seria lastrear a nova moeda em ouro, como tem sido cogitado por economistas russos. Contudo, esses economistas não resolveram, até onde sei, os problemas que essa alternativa encerra — notadamente o seguinte: como dar estabilidade a uma nova moeda apoiando-a em um ativo eminentemente instável? Pode ser que haja solução para isso, mas, se existe, não chegou ao meu conhecimento.
Melhor seria dar confiança e lastrear a nova moeda de outra maneira. Vejamos como. Apresento a seguir uma discussão resumida dos aspectos essenciais.
Quem criaria a nova moeda? Só há uma possibilidade nas atuais circunstâncias internacionais: um grupo de países do Sul Global, algo como 15 a 20 países, que incluiria a maioria dos BRICS e outras nações emergentes de renda média.
Esse grupo poderia delegar a emissão da nova moeda a uma das instituições existentes? Não. Nenhuma tem condições de assumir essa missão com eficiência e confiabilidade.
Teria que ser criada, portanto, uma nova instituição financeira internacional — um banco emissor, cuja única e exclusiva função seria emitir e colocar em circulação a nova moeda. Esse banco não substituiria os bancos centrais nacionais, e a nova moeda circularia em paralelo às moedas nacionais dos países patrocinadores e às demais moedas nacionais e regionais existentes no mundo. Ficaria restrita a transações internacionais, sem papel doméstico.
Não seria, portanto, ao contrário do que muitas vezes se diz, uma moeda do tipo euro — isto é, uma moeda única, emitida por um banco central único, que substituiu moedas nacionais pré-existentes.
Como garantir o sucesso da nova moeda
O que faria a nova moeda ser amplamente utilizada? O essencial é assegurar confiança, o que depende da maneira como o novo arranjo monetário for construído do ponto de vista institucional.
O caminho que me parece mais viável incluiria, entre outros elementos, as seguintes garantias legais:
- Estabilidade da nova moeda em termos de valor;
- Não utilização como instrumento de sanção ou pressão sobre países;
- Autonomia operacional do banco emissor;
- Limite máximo para a emissão;
- Lastreamento da moeda em uma cesta de títulos públicos dos países patrocinadores.
Abordo os cinco pontos em apertadíssima síntese, como dizem os advogados. O primeiro e o quinto demandam um pouco mais de espaço.
A moeda ficaria baseada em uma cesta ponderada das moedas dos países participantes e flutuaria conforme as variações dessas moedas. Como todas seriam flutuantes ou flexíveis, a nova moeda também o seria. Os pesos na cesta seriam dados pela participação do PIB em paridade de poder de compra (PPP) de cada país no PIB total do grupo. A China ficaria com pelo menos 40% a 45% do total, dependendo da composição do grupo.
A cesta teria certa estabilidade endógena, pela presença de moedas tanto de exportadores quanto de importadores de commodities. Essa estabilidade poderia ser reforçada exogenamente, estabelecendo-se que a média ponderada seria geométrica e simetricamente aparada. Moedas com flutuações excessivas, para além de limites pré-estabelecidos, seriam temporariamente excluídas.
O compromisso explícito de não recorrer a sanções criaria contraste com a insegurança resultante do uso abusivo do dólar e do euro como instrumentos de punição e chantagem. Essa garantia legal seria reforçada pela autonomia operacional do banco.
Essa autonomia seria assegurada, por exemplo, com mandatos relativamente longos para presidentes e vice-presidentes (cinco anos). Isso sinalizaria que o banco não estaria facilmente sujeito a interferências políticas ou manobras diplomáticas. A administração prestaria contas aos representantes dos países patrocinadores por meio de conselhos institucionais, e não por pressões individuais.
Um teto para a emissão funcionaria como proteção adicional contra excessos. A nova moeda teria, assim, um freio que as moedas ocidentais não têm.
Mas o elemento central seria o lastreamento. A nova moeda seria lastreada em uma cesta de títulos públicos dos países fundadores e dos que viessem a se juntar depois. O banco emissor emitiria a Nova Moeda de Reserva (NMR) e Novos Títulos de Reserva (NTR), cujas taxas de juros seriam atraentes, pois refletiriam os juros dos títulos dos países participantes — todos superiores aos de títulos em dólar e euro.
A NMR seria plenamente conversível em NTR, e estes, por sua vez, na cesta de títulos nacionais. O peso elevado da moeda chinesa, emitida por uma economia sólida, reforçaria a confiança no lastro e na nova moeda.
A reação do Ocidente
A proposta tem vulnerabilidades, discutidas em detalhe no trabalho em fase de finalização. Para não me alongar, destaco a que me parece mais grave: o risco de que a iniciativa suscite reações negativas do Ocidente, com ameaças e sanções contra os países envolvidos na criação de uma alternativa ao dólar e ao euro.
Esse risco é real. O Ocidente, em franca decadência, mostra-se ainda mais arbitrário e violento do que em outras épocas.
A pergunta, no entanto, é inevitável: vamos conviver indefinidamente com o sistema monetário e financeiro criado desde a Segunda Guerra Mundial — um sistema crescentemente disfuncional e abusado como instrumento geopolítico? Ou reunir esforços econômicos, políticos e intelectuais para sair dessa armadilha?
Os próximos anos dirão se os países emergentes estarão à altura desse desafio.
(Uma versão condensada deste artigo foi publicada na edição n. 1392 de CartaCapital.)