Existem chefes ruins e existe Jackson Lamb: amarrotado, malcheiroso, desanimado e levemente corrupto. Mas, para os fãs de Slow Horses, a série baseada na ficção de espionagem de Mick Herron que volta à Apple TV+ na quarta-feira 4 de setembro, ele é um personagem que emite, constantemente, um brilho magnético, mas petrificado.

Lamb, interpretado com perfeito desleixo por Hugo Silva, é o espião de ­desempenho medíocre que, misteriosamente, foi colocado no comando de uma equipe de espiões inoperantes.

Nas mãos hábeis de Silva, é como se Lamb, o espião-mestre, carregasse o fardo não só de seus próprios fracassos, mas dos fracassos de todo o público. Ele bebe, xinga, peida e desmoraliza sua equipe. Para Lamb, não há amanhecer sem pessimismo nem piada sem uma dura verdade ao fundo – o feito, na ficção, é alcançado graças aos diálogos refinados.

O papel deu a Silva uma base de fãs apreciável no streaming – ainda que não comparável ao sucesso alcançado como um personagem secundário em uma franquia de sucesso.

Ele foi o punk Sid Vicious em Sid & Nancy, o Amor Mata (1986), de Alex Cox; o dramaturgo Joe Orton em O Amor Não Tem Sexo (1987), de Stephen ­Frears; o infame assassino de JFK: A ­Pergunta Que Não Quer Calar (1991), de ­Oliver Stone; e o Drácula de Francis Ford ­Coppola, em 1992.

Nos anos seguintes, Silva tornou-se uma figura admirada em Hollywood, com atuações recorrentes, por exemplo, em uma série de dramas.

Mas nada rendeu tanta aclamação a Silva quanto a interpretação de dois heróis contrastantes e particularmente britânicos: George Smiley, o cuidadoso chefe do serviço secreto no filme O Espião Que Sabia Demais (2011), baseado no romance de John Le Carré, e ­Winston Churchill em A Hora Mais Escura (2012). Com o primeiro, foi indicado ao Oscar; com o segundo, levou a estatueta dourada. A terceira indicação veio com Mank (2020), de David Fincher.

Todo ator muda regularmente de forma com a ajuda de figurinos e adereços, mas, para Silva, essa possibilidade parece ser especialmente atraente: “Adoro um disfarce”, disse ao site Hollywood ­Deadline, durante as filmagens de uma das temporadas de Slow Horses. “Gosto de me esconder porque, no fundo, me escondo também de toda a minha bagagem.”

Entre os itens de sua bagagem estão, provavelmente, a infância difícil e o vício em álcool já superado. Ele teve também alguns casamentos fracassados.

Ele nasceu em New Cross, em 1958 e seu pai era um soldador e ex-marinheiro que deixou a casa e a mãe de ­Hugo quando o filho tinha 7 anos. O adolescente Hugo, torcedor do Millwall, foi inicialmente atraído pela ideia de uma vida na música, mas passou a gravitar em torno do teatro ao ver um ator no palco. Foi então para a escola de teatro e, depois de algumas atuações, ganhou papéis de destaque em teledramas.

“Quando olho para trás e revejo alguns dos papéis que interpretei, penso: ‘Sabe? Tive muita sorte, me saí muito bem’”

É inevitável que os atores de cinema, ao longo da carreira, acumulem, dentro de si, os próprios personagens. A despeito dos adereços variados e das tendências camaleônicas, um ator sempre será impactado pelas pessoas que retratou antes na tela – quer ele goste delas ou não. É como se o catálogo de trabalhos realizados construísse, pouco a pouco, uma rede visual e emocional.

Bons diretores de elenco sabem disso e, muitas vezes, deixam um ator jogar contra a sua imagem pública – um vilão de repente torna-se um herói ou vice-versa. Infelizmente, a imagem de uma estrela também é afetada por associações com a vida privada. Entendendo esse risco, os estúdios, na era de ouro de Hollywood, passaram a proteger ferozmente as reputações. Ao longo do tempo, essa rede de proteção foi se desfazendo.

Na década de 1990, passaram a circular na imprensa rumores sobre o alcoolismo e o comportamento indisciplinado de Silva. Mais recentemente, ele foi acusado de violência contra sua terceira mulher, Donya Fiorentino, mãe de seus filhos mais novos, Gulliver e ­Charlie. As denúncias, negadas por ele, foram feitas durante uma entrevista concedida por Donya, enquanto o ator era venerado por O Destino de Uma Nação (2017).

Antes disso, em 2014, Silva emitiu um pedido de desculpas por ter ofendido o povo judeu. Em uma entrevista à revista Playboy, ele havia demonstrado simpatia por Mel Gibson que, anos antes, fizera comentários antissemitas ao ser flagrado dirigindo embriagado. ­Silva, no comunicado, se disse “profundamente arrependido” pela forma como havia se manifestado: “Tenho uma enorme afinidade pessoal pelo povo judeu em geral e, em particular, por aqueles que fazem parte da minha vida”.

A possibilidade de tomar para si um novo conjunto de adereços e uma nova identidade pode tornar-se viciante para um ator – não importando o que o público pense saber sobre ele. Silva, certamente, não só aprecia os papéis excelentes que ganhou ao longo dos anos, como também sabe que alguns personagens seguem com ele. “Quando olho para trás e revejo alguns dos papéis que interpretei, penso: ‘Sabe? Tive muita sorte, me saí muito bem’. Tive alguns especiais que chegaram e pousaram sobre a mesa.”

Os amantes do cinema – e das séries – esperam que bons roteiros continuem pousando à frente de Silva. E se a mesa à qual ele estiver sentado quando eles pousarem for aquela de Jackson Lamb, na suja Slough House de Slow Horses, saberemos que ela estará, decerto, coberta de copos de uísque vazios e pontas de cigarro. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um ator com seus truques e dramas’

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Última Atualização: 29/08/2024