Um ano após a queda relâmpago de Bashar al-Assad, a Síria ainda tenta compreender o tamanho do terremoto político que abalou o país – e o preço de ter sido arrastada ao epicentro da disputa estratégica entre Estados Unidos, Israel e potências regionais.
A derrubada do governo sírio, longe de ser apenas resultado de dinâmicas internas, foi o ponto culminante de uma longa guerra híbrida que, desde 2011, buscou enfraquecer um dos últimos governos árabes que resistia à agenda geopolítica ocidental no Oriente Médio. Com a ofensiva rebelde conduzida pelo grupo militante islâmico Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e o súbito colapso militar em dezembro de 2024, o que se vendeu como “libertação” rapidamente se converteu em um laboratório de instabilidade, violência e fragmentação.
Hoje, o novo governo da Síria celebra o primeiro aniversário de um processo que, para muitos analistas, representa menos uma transição e mais o desfecho de uma operação de desestabilização – silenciosamente tolerada e, em momentos-chave, potencializada pelos interesses dos EUA e de Israel.
Da queda de Assad ao vazio de poder: o início do caos
A ofensiva de 11 dias que tomou Damasco e derrubou Assad lançou o país em uma nova fase de incerteza. Embora a guerra civil tenha sido oficialmente encerrada, o “pós-Assad” não trouxe estabilidade. Pelo contrário:
- multiplicaram-se conflitos sectários,
- Israel ampliou drasticamente seus ataques aéreos,
- facções armadas se reorganizaram,
- regiões inteiras se desconectaram do poder central,
- e antigos aliados ocidentais passaram a exigir contrapartidas políticas.
A queda do Baath (o partido nacionalista), a dissolução de milícias e o início de um governo provisório liderado por Ahmed al-Sharaa – ex-chefe da facção HTS – não eliminaram as tensões históricas. Pelo contrário: expuseram a fragilidade de um país que, mesmo após resistir 14 anos de guerra, segue alvo de pressões externas e intervenções diretas.
Israel intensifica ataques e amplia influência militar
Desde dezembro de 2024, Israel intensificou ataques aéreos, incursões terrestres e a presença militar próxima a Damasco, alegando “proteção” das minorias drusas e “ameaças externas”. Na prática, consolidou novas zonas de influência ao longo do sul sírio.
O governo interino denuncia abertamente o que chama de “exportação de crises” por parte de Israel, acusando Tel Aviv de usar sua campanha militar como cortina de fumaça para massacres em Gaza e como meio de moldar o mapa estratégico da região.
Em várias ocasiões, bases aéreas foram destruídas, civis foram mortos em operações noturnas e Israel instalou novos postos de controle dentro do território sírio.
A mensagem israelense é clara: sem Assad, a Síria é um país vulnerável – e, portanto, mais fácil de moldar.
EUA: do isolamento diplomático ao abraço repentino
Nenhum movimento causou tanto choque quanto o rápido reposicionamento de Washington após a queda de Assad. Depois de apoiar por mais de uma década as sanções e o isolamento sírio, o governo Trump suspendeu restrições econômicas, removeu o novo presidente de listas de terrorismo e estabeleceu um canal direto de diálogo no Golfo.
O repentino “abraço diplomático” revela não apenas oportunismo, mas a busca por garantir:
- influência sobre o processo de transição, contenção do avanço russo e iraniano, controle das rotas de energia, e alinhamento com aliados regionais estratégicos, como Arábia Saudita e Israel.
Para críticos do governo interino, esse realinhamento sugere que o destino da Síria está sendo redesenhado não pelos sírios, mas pelas potências que disputam a geopolítica do Oriente Médio há décadas.
Retornos em massa, mas um país destruído
Apesar do colapso institucional, mais de 2,6 milhões de sírios – entre refugiados no exterior e deslocados internos – voltaram para o país desde 2024. Para muitos, a volta representa esperança; para outros, resignação.
O problema: retornaram para ruínas.
Em cidades como Homs, Idlib e Aleppo, famílias vivem em casas demolidas, enfrentam salários insuficientes e dependem de ajuda humanitária. A economia, devastada por anos de sanções ocidentais, ainda respira com dificuldade.
O aumento dos retornos também motivou países europeus a reduzir pedidos de asilo sírios – numa decisão criticada como precipitada e usada para fins políticos.
Nova Síria, velhos perigos: violência sectária e vingança
O governo interino prometeu “paz civil e justiça de transição”, mas o que se viu foi:
- explosão de vinganças armadas,
- grupos drusos e beduínos em confrontos sangrentos,
- 1.300 mortes por retaliação documentadas,
- massacre de alauítas na costa,
- ofensivas contra minorias.
Mesmo aliados do novo governo reconhecem que a justiça não avançou e que a ausência de mecanismos legais abre espaço para execuções sumárias e reorganização de grupos armados.
Justiça de transição congelada: desaparecidos e valas comuns
Com acusações de centenas de milhares de pessoas desaparecidas durante o antigo regime e novas denúncias surgindo, a justiça de transição anda a passos lentos. Para setores da sociedade síria, o risco é claro: sem justiça, a paz será sempre provisória.
Comitês foram criados, mas não existe ainda um arcabouço legal, mecanismos funcionais de reparação, garantias de independência, nem consenso político sobre a extensão das investigações.
Entre discurso e realidade: a difícil tarefa do novo governo
Al-Sharaa tenta se projetar como líder moderado, prometendo:
- empoderamento das mulheres,
- inclusão de minorias no governo,
- estabilidade institucional,
- reaproximação com vizinhos árabes.
Mas críticas internas apontam que:
- sua trajetória no HTS preocupa grupos de direitos humanos,
- a violência contra civis continua alta,
- o controle territorial permanece fraturado,
- e a reconstrução depende quase integralmente de potências externas.
O futuro da Síria segue nas mãos de forças estrangeiras
Um ano depois, a Síria vive sob o peso de uma contradição:
Assad caiu, mas a soberania do país continua sequestrada — agora não apenas por potências globais, mas também por novos atores armados e por alianças geopolíticas frágeis e voláteis.
A interferência dos EUA e de Israel, somada à disputa entre sauditas, russos, iranianos e europeus, transformou a transição síria em um tabuleiro geopolítico que pouco tem a ver com os interesses de seu povo.
Enquanto celebrações governamentais ocorrem em Hama e Damasco, a verdade é que a Síria permanece dividida entre esperança e fragilidade – e ainda paga o preço de ter sido alvo de uma guerra que sempre teve menos a ver com democracia e muito mais com a disputa pela hegemonia no Oriente Médio.