
Por MATRIA*
Uma resolução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) abriu as portas para um ataque sem precedentes à liberdade acadêmica e à liberdade de expressão. A MATRIA está questionando sobre justiça a Resolução Normativa 181/2023/CUn , que não apenas distorce perigosamente as políticas de cotas, mas também transforma a universidade em um território de vigilância comportamental e proteção arbitrária .
Entre outras medidas, a resolução institui um regime de “formação” que busca impor uma visão de mundo única aos docentes, técnicos e terceirizados, silenciando o debate plural e subvertendo a autonomia acadêmica. Além disso, estabelece punições disciplinares e frequência obrigatória em “grupos reflexivos” para “falta de sensibilidade”, “microagressões”, “perguntas invasivas”, “omissões”, “discriminação indireta”, não utilizar pronomes desejados e até “ações transfóbicas não intencionais”, definidas de forma própria subjetiva pelo ofendido.
Essa manobra traz no seu bojo uma estratégia muito perigosa: o uso da regulamentação das cotas para instaurar um sistema de controle e censura, com graves implicações para toda a comunidade universitária e para a sociedade em geral.
Nesse texto, dissecamos a resolução, mostrando porque ela é grave e atinge toda e qualquer pessoa, independentemente de suas posições políticas, sua posição na universidade e até mesmo sua postura diante das próprias cotas.
“Letramento” como forma de vigilância comportamental
A Resolução Normativa 181/2023/CUn impõe uma “formação continuada” para servidores docentes e técnicos-administrativos (Art. 21, II) e ações “educativas” para equipes terceirizadas (Art. 19) para “atuar junto a esse público [trans]” e “trabalhar especificidades de abordagem”.
Em vez de promover um debate acadêmico plural, essa “formação” visa importar uma visão única, tratada como dogma inquestionável. Isso cerceia a liberdade de cátedra e pensamento, pois professores, servidores e terceirizados são “educados” para aderir a um conjunto de ideias e comportamentos prescritos. Qualquer desvio, “mesmo que não intencional”, pode ser visto como falha na “formação” ou, pior, como transfobia.
Definições Subjetivas e Expansivas de “Transfobia”
A Resolução (Art. 23) define “atos e comportamentos transfóbicos” de maneira extraordinariamente ampla e subjetiva. Inclui não apenas a discriminação intencional, mas também a “indireta (por ignorância)”, “microagressões” (definidas como atitudes que expressam “ausência de sensibilidade a essas identidades”), o ” desrespeito à identidade de gênero” (como a negação de pronomes desejados ou fazer “perguntas invasivas” – que não são definidas) , e até mesmo “patologização” (discursos que “buscam importa um lugar de adoecimento” aqueles que “subvertem uma cisgeneridade”).
A amplitude, a ambiguidade e a subjetividade tornam-se definições praticamente qualquer interação ou expressão passível de ser interpretada como transfóbica e coloca o poder de definir transfobia virtualmente nas mãos de qualquer pessoa. A “ignorância” ou a “ausência de sensibilidade” são critérios vagos que dependem da percepção do autodeclarado ofendido, gerando insegurança constante.
Poder de Definir e Punir
A Resolução estabelece disposições para qualquer comportamento vaga e subjetivamente definido como transfobia, instituindo um regime de vigilância e tolerância. A universidade é arvora o poder de policiar o discurso e o comportamento de forma extensiva.
A combinação de definições de vagas com a ameaça de avaliação cria um ambiente onde o medo de ser acusado de transfobia – mesmo por atos não intencionais ou por expressar uma opinião acadêmica divergente – leva à autocensura, autovigilância constante e uma espiral do silêncio – cobrando um alto preço psicológico e criando um clima de policiamento e desconfiança em toda a comunidade universitária. Questionar qualquer ideia cara aos coletivos e movimentos ativistas pode ser enquadrado como um “discurso de ódio” ou “injúria transfóbica”.
A própria definição de “pessoa trans” exigida pela UFSC para definir os beneficiários das cotas é, segundo eles, um “termo guarda-chuva” que pode incluir “outras [identidades] que porventura surjam” (Art. 1º, Parágrafo único). Isso torna o escopo da proteção e do potencial ofensivo expansível indefinidamente.
As punições previstas são aplicáveis a toda comunidade universitária, desde docentes, técnicos, terceirizados até discentes da educação básica, graduação e pós-graduação. A universidade prevê que os acusados recebam avaliações disciplinares e administrativas e “medidas educativas” como participação em grupos de reflexão, suspensão e participação obrigatória em disciplinas sobre o tema transgênero.
Fim do Contraditório, Interdição do Debate e Pensamento Único
A Resolução viola toda a principiologia constitucional da liberdade de expressão ao interditar o debate e a discussão. A própria proteção de espaços exclusivos femininos, quando dada com a política de identidade de gênero, é interpretada como transfóbica, como sugere uma discussão sobre banheiros feita pelo texto.
A universidade, que deveria ser um local de livre debate e confronto de ideias, torna-se um espaço onde certas narrativas são sacralizadas e imunes à crítica. A imposição de uma formação continuada de docentes para que se alinhem a esses princípios é uma violação direta à autonomia, à liberdade de pensamento e expressão e à liberdade de cátedra.
O sistema “educativo”, aliado às definições de vagas de transfobia e avaliações disciplinares, afetando duramente a liberdade de cátedra, visto que até conteúdos de disciplinas e currículos podem ser apontados como preconceituosos e lesivos. Os exemplos mais óbvios são as disciplinas da medicina, biologia, saúde, arqueologia, que lidam diretamente com o sexo e reprodução humana. Com as demandas de grupos ativistas por linguagem neutra e desligamento do sexo, qualquer área de conhecimento pode ser afetada e todo conteúdo pode cair em suspeita.

Vulnerabilização das trabalhadoras da UFSC
A Resolução Normativa 181/2023/CUn coloca as trabalhadoras da UFSC em uma posição extremamente vulnerável. Os trabalhadores, especialmente aqueles em funções de atendimento ao público ou fiscalização, podem se sentir paralisados pelo recebimento de cometer uma “microagressão” não intencional ou de serem acusados de “falta de sensibilidade”.
O caso de uma trabalhadora da Universidade Federal da Paraíba que foi desligada da universidade e depois processada por transfobia após pedir a um homem que se retirasse de um banheiro feminino ilustra perfeitamente esse perigo. Na UFSC, uma situação semelhante poderia levar a um processo disciplinar ou desligamento, com consequências graves para o trabalho e bem-estar emocional do trabalhadora. Essa resolução, portanto, não apenas restringe a liberdade de expressão, mas também coloca em risco a segurança no trabalho e a dignidade das mulheres que atuam na universidade.
Desdobramentos recentes
A MATRIA ajuizou uma Ação Civil Pública em que questiona judicialmente a Resolução nº 181/2023/CUn e os editais dela decorrentes. Após a negativa de suspensão dos efeitos da resolução e dos editais pela primeira instância, essa semana o TRF-4 indeferiu a antecipação da tutela recursal pretendida pela MATRIA.
A desembargadora Eliana Paggiarin Marinho conseguiu que a suspensão da Resolução e do Edital nº 007/2025/DDP, que reservou a única vaga em uma seleção para residência médica em pediatria na UFSC para candidato trans, “tem potencial de causar maior prejuízo do que sua manutenção até a decisão definitiva do presente agravo”, obtendo que as informações enviadas ou comprovadamente falsas, recorrentemente divulgadas por transativistas, presunção de veracidade.
Na prática, a universidade violou o próprio princípio da impessoalidade das cotas, pois tornou-se essa vaga exclusiva para uma pessoa autodeclarada trans. Num sistema de cotas, uma porcentagem específica do total de vagas é reservada, garantindo acesso a grupos específicos; entretanto, reserve 100% das vagas para um único grupo desvirtua o conceito de cota, transformando-o em uma exclusividade, não mais em uma reserva parcial.
Sobre as cotas, os problemas já são conhecidos: a falta de justificativa com base em dados confiáveis; a falta de um estudo da universidade que comprove que pessoas transidentificadas não estão conseguindo acesso à UFSC; o uso de informações falsas para embasar a decisão – a conhecida desinformação de que a expectativa de vida de pessoas trans é de 35 anos, e de que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo ; e a autodeclaração como títulos soberanos para acesso às cotas, inverificáveis e incontestáveis por terceiros.
Embora a desembargadora tenha alegado em seu indeferimento ao pedido da MATRIA que a política de cotas trans da UFSC possui critérios objetivos para a reserva de vagas – como a apresentação de um memorial descritivo – isso não é um objetivo objetivo. Objetividade é a possibilidade de verificação e fiscalização de uma informação por outros, o que é impossível – visto que a UFSC e organizações como a ANTRA afirmam que não se pode questionar a autodeclaração de ninguém.
Além desses problemas, a UFSC traz mais uma inovação: cotas para “identidades futuras” , ou seja, identidades que ainda não existem. Nos termos da resolução:
Para efeitos da presente Resolução Normativa, a designação “pessoa trans” será utilizada como termo guarda-chuva que abriga as categorias pessoa transexual, travesti, transmasculina, transgênera, não binária e outras que porventura surjam .
Como argumentamos, caso queira manter a validade da Resolução, o TRF-4 não apenas apoiará uma política de cotas mal feitas. Estará dando aval para a censura e para a proteção institucional de mulheres, a instalação de um regime de medo e ameaça com processos disciplinares sobre docentes, técnicos, terceirizados e discentes, o fim da liberdade acadêmica, e um ataque direto à liberdade de consciência e de expressão.
A perseguição não atinge só quem está na UFSC. Ela cria um precedente grave: o de que ideologias podem ser impostas à força e sem debate. E pior: que o sistema de Justiça possa apoiar resoluções que violem os direitos fundamentais de metade da população — as mulheres — e que transformem as universidades em regimes autoritários.
Outras universidades de todo o país emitiram atos normativos com a previsão das cotas trans. Porém, por trás do tom democrático nas divulgações dessas supostas “vitórias” para pessoas autodeclaradas está o silenciamento da comunidade universitária, que não pode manifestar qualquer ponderação ou discordância, como bem demonstrado pela Resolução nº 181/2023/CUn da UFSC, sob pena da perseguição institucionalizada à parcela da comunidade acadêmica que demonstra qualquer desconforto com a imposição desta agenda.
A MATRIA não se cala. Seguiremos denunciando o uso das cotas na UFSC como porta de entrada para o autoritarismo nas universidades.
Originalmente publicado pela MATRIA
* O que é a MATRIA
A MATRIA – Mulheres Associadas, Mães e Trabalhadoras do Brasil – é uma organização que promove e protege os direitos humanos de mulheres e crianças com base no sexo biológico. Sua atuação inclui o fomento ao diálogo, a fiscalização e o acompanhamento da formulação e implementação de leis e políticas públicas em todas as esferas, com o objetivo de conscientizar a sociedade sobre a importância da distinção sexual na garantia de direitos.
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