A decisão da Ucrânia de encerrar um contrato de décadas e interromper o fluxo de gás russo que passava por seu território para ser distribuído à Europa começou a valer nesta quarta-feira e já produz impactos em países do Leste Europeu.
Embora a Europa tenha tentado se desvincular da dependência do gás russo desde que Putin enviou tropas à Ucrânia em fevereiro de 2022, vários países do leste europeu ainda dependem de Moscou para suprir sua demanda energética.
Regiões da Moldávia, país que declarou situação de emergência neste mês em decorrência da decisão ucraniana, já começaram a ficar sem aquecimento ou água quente. Países como a Eslováquia também criticam o movimento do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e ameaçam Kiev com retaliações.
Para o ministro ucraniano de Energia, German Galushchenko, porém, o fim do fluxo de gás russo é um “evento histórico”, que vai secar uma fonte importante de recursos de Moscou. “A Rússia está perdendo seus mercados e sofrerá perdas financeiras”, disse nesta quarta-feira. Em publicação nas redes sociais, Zelensky defendeu que a data marca “uma das maiores derrotas” do presidente russo Vladimir Putin desde o início da guerra.
“Quando Putin assumiu o poder na Rússia, há mais de 25 anos, a transferência anual de gás através da Ucrânia para a Europa era de mais de 130 bilhões de metros cúbicos. Hoje, o trânsito de gás russo é zero. Essa é uma das maiores derrotas de Moscou”, afirmou.
A Polônia, que não importa gás da Rússia, saudou a decisão. “É uma nova vitória após a ampliação da Otan para a Finlândia e a Suécia”, disse o ministro das Relações Exteriores da Polônia, Radoslaw Sikorski, em um post no X.
Entenda o acordo
Sob um acordo de cinco anos assinado em 2019, a Ucrânia permitia que a Rússia transportasse gás para a Europa. Mas Kiev se recusou a renovar o contrato a partir de 2025.
Antes da guerra, o gás da Rússia respondia por 40% da importação do recurso por países europeus. Essa fatia caiu drasticamente em 2023, para menos de 10%. Porém, quase um terço do gás que ainda chegava nas residências de países europeus passava pela Ucrânia, disse Phuc-Vinh Nguyen, chefe do Centro de Energia do Instituto Jacques Delors. O restante é levado via gasoduto sob o Mar Negro para Bulgária, Sérvia e Hungria, ou por meio de embarques de gás natural liquefeito (GNL).
Estado de emergência na Moldávia
A situação é mais crítica na Moldávia, que faz fronteira com a Ucrânia e tem que lidar com separatistas apoiados pela Rússia em seu território. O país já havia introduzido um estado de emergência de 60 dias no início deste mês, antecipando o corte de Kiev. No sábado, porém, a empresa russa de distribuição de gás, Gazprom, anunciou que também interromperia a distribuição do produto ao país devido a uma disputa sobre dívidas.
A Gazprom já havia reduzido suas entregas à Moldávia desde o início da invasão, suprindo apenas o território separatista da Transnistria. No entanto, a usina da região apoiada por Moscou ainda fornece cerca de dois terços da eletricidade consumida em todo o país. “O Kremlin recorreu novamente à chantagem energética para influenciar as eleições parlamentares de 2025 e minar nosso caminho europeu”, disse a presidente da Moldávia, Maia Sandu. A política pró-europeia foi reeleita em novembro, após um pleito marcado por acusações de interferência russa.
Sandu ofereceu ajuda humanitária aos residentes da Transnístria, que já começaram a ficar sem aquecimento no inverno. Mas as autoridades locais recusaram, disse Alexandru Flenchea, ex-funcionário do governo e especialista em resolução de conflitos na região. Na estratégia de desestabilização da Rússia, “a Transnístria é nada mais do que dano colateral”, argumentou Flenchea. Phuc-Vinh concordou, acusando Putin de usar o gás como uma “arma geopolítica” para “minar a região, alimentar os ressentimentos da população para influenciar o apoio à Ucrânia e semear sementes de discórdia pela Europa”.
O governo da Moldávia respondeu com medidas drásticas para limitar o consumo de energia, incluindo restrições na iluminação de prédios públicos e no uso de elevadores. Também pretende compensar a escassez comprando eletricidade da vizinha Romênia.
Nesta quarta-feira, o governo da Moldávia disse que todos os consumidores ficarão seguros e que as usinas termelétricas do país continuam a funcionar normalmente.
Na Transdniestria, porém, o site da empresa de energia local informou que o corte do aquecimento e da água quente entrou em vigor às 7h da manhã de quarta-feira. Instalações como hospitais seguem funcionando normalmente.
A empresa recomendou aos residentes que se agasalhassem, reunissem os membros da família em um único cômodo, pendurassem cobertores ou cortinas grossas nas janelas e usassem aquecedores elétricos.
“É proibido usar fogões a gás para aquecer o apartamento, isso pode levar a uma tragédia”, disse a empresa.
União Europeia ‘preparada’
Com 14 bilhões de metros cúbicos transportados por ano via Ucrânia, representando apenas 5% das importações totais de gás da União Europeia, o bloco afirmou que estava “preparado” para o corte no fluxo.
Em um relatório publicado em meados de dezembro, a UE considerou o impacto como limitado. “A Comissão está trabalhando há mais de um ano especificamente para se preparar para um cenário sem gás russo transitando pela Ucrânia”, disse o bloco, em nota, à agência de notícias AFP na terça-feira. A UE afirmou que a infraestrutura de gás do bloco foi fortalecida nos últimos anos e apontou os esforços para tornar “fornecimentos alternativos” disponíveis para os países afetados.
Eslováquia promete retaliação
O impacto também deve chegar na Eslováquia. O primeiro-ministro do país, Robert Fico – um dos poucos aliados do Kremlin na UE – criticou a decisão de Kiev. “Aceitar a decisão unilateral do presidente ucraniano é totalmente irracional”, afirmou Fico em uma carta a Bruxelas, condenando o “grande impacto financeiro em um período econômico complicado”. Em resposta, Fico ameaçou cortar o fornecimento de eletricidade para a Ucrânia.
Por outro lado, a vizinha Hungria – que, assim como a Eslováquia, mantém uma postura amigável a Moscou – recebe a maior parte de suas importações de gás russo via o gasoduto do Mar Negro. Como resultado, Budapeste permanece em grande parte imune à decisão da Ucrânia.